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Dom Eduardo, Pe. Torrend e Dom Timóteo

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1993

 

Sou hoje devoto de três santos. Dom Eduardo, que trago na carteira. Recebi o seu retratinho de minha mãe, que o viu uma única vez, lá pelos anos 40, em visita ao lugar chamado Tesouras, hoje município de Ibirataia. Chegara de Ilhéus montado em mula ferrada dos quatro pés, varando matas, estivados sobre atoleiros, no brongo, onde morávamos. Em Missão. Se já era santo, pouco importa. Só o fato de chegar até ali, naquela época, já o teria canonizado. O Vaticano, com o seu Esplendor, que me perdoe. Mas a beatificação foi declarada lá em casa. Ninguém tira Dom Eduardo de minha carteira. Tenho dito.

Minha segunda devoção é com o Pe. Torrend, botânico famoso. Que a Bahia liga pouco. Riscou esses sertões com seus borzeguins e batina à caça de pedras, plantas, insetos. Fez mais que os Humbolt, Saint Hilaire e companhia. Criou o Pensionato Acadêmico. Fui seu aluno e empregado, estudando à noite no Ginásio da Bahia, do professor Conceição Menezes. E nos fins de semana assistia em Mar Grande, cuidando do sítio e da capela, destinados aos retiros espirituais. Convivi longas horas com ele, cuidando das plantas, quando colhíamos vagens tenras de feijão para comê-las. Irrigávamos bananeiras com canos feitos de colmos de bambus. E eu curioso, deslumbrado com Darwin, Lamarck, Huxley, H.G. Wells, puxava conversa sobre a origem do homem. Pe. Torrend, descontraído, quebrando tabus da Santa Igreja, já falava em hominídeos e Theilhard de Chardin, admitindo que nada impedia ser o macaco o barro sobre o qual Deus teria soprado a alma. Àquela época Theilhard de Chardin, conterrâneo do jesuíta, não podia ser publicado, nem lido. Era execrado pelas suas pesquisas e descobertas paleontológicas. Mas Pe. Torrend já o aceitava. Alimentando a curiosidade do rapazola de 17 anos.

Agora assumo nova devoção. Aliás, ele já é padroeiro dos perseguidos, ateus, marxistas. Muitos comunistas, de “O Capital” no sovaco aos domingos, levam medalhinha de Dom Timóteo ao pescoço. Há dias recebi carta de José Saramago, o do “Evangelho...”, falando sobre um escrito dele e de outro santo, o Leonardo Boff.

Dom Timóteo, no artigo “Boas-Vindas, Madonna”, em A TARDE, 28.10.93, resume a bíblia no que há de mais humano na religião cristã, a simbologia de Madalena — a pecadora, com a perfídia dos fariseus. Transforma Madonna, a também execrada pelos hipócritas, em redentora. Chama-a de “minha irmã de fé em Jesus”. Que maravilha de sinceridade, coragem e negação da hipocrisia! Eleva-a à condição de quem busca a “liberdade primeva de um mundo sem pecado”. Que sublimidade de visão! Dom Timóteo não é só capaz de cultivar a flor no lodo. Transforma a própria lama em perfumado lírio. Muito obrigado, Dom Timóteo, por essa claridade capaz de enxergar no gênero humano o seu lado que nós imaginávamos perdido.

Ganhei um terceiro santo. Ao lado de Dom Eduardo e Pe. Torrend, juntarei agora o beneditino.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).