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Discurso da instalação da Subseção da Ordem dos Advogados de Ipiaú

Euclides Neto

Ipiaú - Ba - 1986

24 de maio de 1986

 

De primeiro, pertencemos à Comarca de Camamu. Escuros tempos. A Justiça de lá era tão estranha que as pessoas daqui praguejavam contra os desafetos, dizendo-lhes:

– A justiça de Camamu que te persiga.

O que significava: cairás na desgraça eterna.

Os contadores de antigamente narram que o primeiro nome do nosso Município, Rapa-Tição, deve-se a uma batalha entre mulheres – já feministas e tão valentes – que se serviam de achas de lenha em brasa durante os combates.

Portanto, a história não é das mais tranquilas quanto ao apego às normas jurídicas.

Talvez, e em compensação, tenhamos tido, criado o termo de Rio Novo e, em seguida, a comarca de Ipiaú, nomes como Valter da Silveira, o Pretor. Leônidas Fernandes Leão, Juiz de coragem e méritos reconhecidos. Jaime Bulhões, Raimundo Vilela, hoje desembargadores, este último que teve a bravura de se interpor entre a turba inconsequente de 64 e o prédio da Justiça do Trabalho – quando se pretendeu arrasá-lo, autorizando à polícia ali postada por sua ordem, que abrisse fogo contra os assaltantes. Osmar, Fernando Tourinho, de até doze audiências em um só dia, hoje Juiz Federal. Culminando com a serenidade da Dra. Maria José Muniz Lino de Andrade. Além de outros. Dos advogados, só para constar os da memória, e já falecidos, lembraríamos Pedro Caetano Magalhães de Jesus, civilista, obsessivo pela prova, hábil, tranquilo, correto; Antônio José Marques Filho, o talento faiscante, a oratória asseada, culta, dramática e cômica quando desejava, sentimental nas admiráveis defesas criminais; Landulfo Rocha Medrado, a verticalidade jurídica, um mestre do direito, dando-se ao luxo de ler e citar línguas exóticas, mais o jurista puro, sem apetite para o dia e noite das enfadonhas audiências. Os serventuários: Oscar Borges, Juca, Epifânio.

Hoje, instalamos a Subseção da Ordem dos Advogados de Ipiaú, graças ao empenho do Dr. Osvaldo Rosa Filho e ao programa de expansão do Dr. Pedro Milton de Brito.

A responsabilidade cresceu. Confiaram em nós.

Inicialmente, para dar exemplo, precisamos ser mais exigentes para com a nossa própria classe. E, ao invés de, inconsequentemente, defendermos sempre o colega, carecemos cobrar-lhe os deveres da ética e da probidade. Não podemos exigir dos desembargadores, juízes, promotores e serventuários o comportamento digno da Justiça se não lhes oferecemos um proceder isento de qualquer mácula.

Qual o advogado que não verruma fundo, às vezes cruelmente, os Magistrados, a Justiça, como um todo, enfim? Será que o proceder da nossa classe não contribui com esse estado de coisas? Não somos peça dessa função chamada Justiça, e estamos também enfermos? Não pecamos, igualmente, por sermos preguiçosos, interesseiros, desatenciosos com as partes mais carentes, e mais solícitos com os donos do poder econômico e político, indolentes na interpretação das leis, ambiciosos em demasia? Cumprimos aquele singelo juramento de formatura, esquecido, às vezes, após proferi-lo? Urge que cultuemos a autocrítica, sinceramente, objetivamente, para que depois possamos buscar e defender as prerrogativas com dignidade e altivez.

Não pretendemos ser uma elite no sentido aristocrático do termo: elite de punhos rendados, piscinas e escunas. Temos que ser uma elite como elite é o bom trabalhador da fábrica, o rural, o bancário, o fazendeiro que explora devidamente a sua terra, o empresário urbano que vive à frente do seu negócio, cônscios da responsabilidade social. Se não pudermos construir toda a parede, que ao menos nela coloquemos o nosso tijolo, bem firme e de boa vontade. Aquela elite pequeno-burguesa aristocrática tornou-se ridícula. Os valores maiores apontam para os que elaboram as leis, cumprem-nas, fiscalizam-nas, visando a uma sociedade em que não continuem as agudas lutas de classe, terrorismos, assaltantes, fome, cuja culpa todos nós precisamos assumir.

Não podemos ser meros lavradores de petições engorduradas de leis e jurisprudência. O nosso papel é superior. Somos, queiram ou não, os vigilantes da liberdade. Quando cessam os direitos do cidadão, quando desabam os desatinos das ditaduras, o estalar nos nervos nas torturas, a perseguição política e as arbitrariedades de todas cores do arco-íris, só resta um conforto às vitimas: o advogado. Não portamos armas, nem poder, nem qualquer força. Mas sumulamos a consciência do bem, existentes, ainda que a esquírolas, até na alma dos celerados e ditadores. Há pouco presenciamos o desaparecimento da força do direito. E quando escureceu de tudo, quando emascularam o legislativo nas suas representações mais legítimas, quando o judiciário sucumbiu e mandava o dispositivo constitucional da carta de 67, art. 173, que rezava “Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março”, restou a elefantíase do Executivo-Militar, arbitrário e ilegal, de pistola e sabre, fundindo em sua monstruosidade todos os poderes da República. Prendiam, violentavam, arrombavam lares, queimavam livros (curioso, os livros são os primeiros a sofrer, transformando-se em seres vivos e temidos!). Quando a própria Igreja refugiou-se nas catacumbas, e poucos padres saíam às ruas, quando o medo se generalizou, cresceu a figura do advogado. Quando tudo virou trevas, surgiu um quarto poder, substituindo os dois sacrificados – o poder sem garantias materiais e sem definição nos preceitos da Constituição – o poder sem a força, armado somente com a razão: A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. É que advogado não se cassa, podendo, até, ser caçado pela violência. O advogado não se amedronta. Digo: O ADVOGADO! E ele, e eles resistiram: e só com a resistência do que é justo e universal. Nada mais. Tal verdade vale para os advogados que frequentavam os calabouços de São Paulo, para o que impetrou habeas corpus em favor de Miguel Arraias, ao Supremo Tribunal, conseguindo-o. Pôde a força não deixar cumprir a Ordem, mas o juízo maior do País sentiu que havia nascido um novo poder da República na atitude de Sobral Pinto. Nem sempre a vitória é a conquista fácil. A vitória é composta das pequenas lutas até chegar lá. Chegamos agora. O conceito vale também para o modesto operário do direito cá de fora, ameaçado e agredido pelo Delegado de Wenceslau Guimarães, ao defender o posseiro ferido à bala e ainda encarcerado injustamente. Lá, como cá, é o campo de profissional do direito. O advogado não tem garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade, mas não se submete aos períodos de exceção, promotores dos mais dóceis, quase sempre. Quem nos promove é a sociedade, o cliente, o consenso público. Estes bem mais difíceis de comprometerem-se com interesses escusos.

Não é também a grandeza de cabedais, cujo parâmetro estimulador pelo voraz, consumismo, que enaltece o profissional. Tome-se como exemplo, mais uma vez, o citado Sobral Pinto.

Jamais pensemos em servir aos poderosos, servilmente. Há vantagens momentâneas, ao fim do que, chega à frustração. E o julgamento do próprio beneficiado é de que nos conquistaram como rameiras.

Dizer que advocacia é sacerdócio é pouco. O sacerdote vive nos tabernáculos e nas igrejas, ambientes assépticos aos interesses materiais. Lida com os anjos e santos, também com os homens, mas longe das tentações do dinheiro. Seu lugar é o templo onde o incenso, as mirras sacras dos turíbulos evolam-se nas naves e sacristias. Respira estado de graça nos lugares sacrossantos. Nós convivemos nas cadeias, nos fóruns, na assessoria às empresas, onde os harmônicos são o trincar das moedas, o gargalhar histérico dos pregões e lucros, o aliciamento para o tráfico e o parto das fortunas. E nada mais seremos, se não tivermos cuidado, que parteiras das riquezas espúrias. Aí reside o perigo, a tentação maior. Não basta o sacerdócio, carece ser um Gandhi para resistir a tanto.

Dizer-se advogado é fácil. Sê-lo, contudo, na expressão superior e funda dos mandamentos estatutários da Ordem, é que demanda esforço, preparo espiritual e a força interior de querer, de libertar-se, desprender-se. Ser livre significa ter uma independência de caráter capaz de caminhar sem carpir as incompreensões, ser empurrado e não cair. Jamais decair. Fazer-se respeitar, sendo respeitoso e, no fim da estrada, poder afirmar:

Defendi as boas causas,

pelejei contra os opressores e não me dobrei a eles.

Defendi, às vezes, os poderosos, jamais contra os humildes,

mas dei prioridade aos sacrificados.

Não humilhei a parte vencida.

Jamais fui escravo dos preconceitos criados pela classe dominante em favor dos seus privilégios.

Sempre aleguei e pedi equidade, mesmo quando o conceito e a expressão se ausentaram dos pretórios.

Não precisa chegar ao radicalismo místico de quem jamais acusou, jamais advogou para firmas exportadoras de cacau, bancos e agiotas, mas sempre defendeu os prejudicados, contra eles. Não precisa ser o que não executa, não advoga contra trabalhadores.

Não precisa ser um santo nem um sábio

Basta ser um humilde e bom pai de família, no conceito do direito romano.

Sendo-o, poderemos afirmar:

Sou um advogado.

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).