Discurso como patrono da turma de direito da UESC (Universidade Estadual Santa Cruz)
Euclides Neto
1999
Excelências
Uma Universidade deve ser parte integrante da comunidade onde está inserida, vivendo as implicações sociais, econômicas e culturais. Vai além do ensino formal. Não fica alheia ao que se passa em volta, no tempo e na realidade. É o que acontece com a UESC. Nada escapa à sua influência – desde a erudita aula de um FRANCOLINO NETO aos atabaques (não menos eruditos para a pesquisa) de RUI PÓVOAS. Das consequências da vassoura-de-bruxa à degradação do rio Cachoeira e suas nascentes. Capaz de agasalhar um Seminário Internacional de Literaturas de Língua Portuguesa. Antes da magistral ideia de SOANE NAZARÉ, tudo se passava somente pelos gabinetes governamentais da ordem política. Hoje é obrigatória a participação desta excelsa Casa de Ensino Superior, mesmo discreta, às vezes, sob a direção da Magnífica Reitora RENÉE ALBAGLI NOGUEIRA.
Nem tudo está explícito nos regulamentos universitários. O importante é existir e atuar no espírito e na sensibilidade desta casa. Uma espécie de norma consuetudinária.
É a maior referência regional. Sem deixar a universalidade do conhecimento, quando a Biblioteca do Congresso Americano solicita a remessa do Dicionareco, escrito pelo mais bisonho dos escritores da região. Ou quando MARIA DE LOURDES NETO SIMÕES vai à Coimbra representar a Cultura da nossa terra. Ensina a ciência dos compêndios e laboratórios e pesquisa a cultura dos trabalhadores rurais.
Oxford, ilhada pela sofisticação e indiferença pelo social, tem menos importância para nós. Somos aqui mais humanistas, com a virtude de democratizar o conhecimento, evitando o maior drama da atualidade brasileira – o êxodo interiorano da juventude. Ao contrário, estimula-a a permanecer no seu chão. Não carecemos mais de Coimbra ou da Escola de Direito do Recife, ou a do Largo de São Francisco em São Paulo, ou a de Medicina do Terreiro de Jesus, frequentadas pela nobreza do sangue e do dinheiro. Somos, pois, mais importante, que Haward ou a Sorbonne. Saindo um diplomado daqui, para exercer o Ministério do Exterior ou a presidência da República, está capacitado para fazer a sociedade feliz. Bem mais que o Doutor formado em Londres, e que, ao retornar, se imagina à margem do Tâmisa e não do rio das Contas.
Outra característica da UESC é o culto à liberdade e à cidadania, uma consequência da outra. Não se podendo negar-lhe a qualidade de elite intelectual, primando pela independência ética, política e moral, como uma Universidade madura, cônscia das suas prerrogativas, sem a corrupção da subserviência (a pior de todas). É de justiça citar nessa admirável equipe, como homenagem a todos os demais, os nomes das professoras MARGARIDA CORDEIRO FAHEL e MARIA LUÍZA NOVA DE ANDRADE.
A confissão é alivio do sentimento de culpa. Aqui vai uma: diplomado pela Escola de Direito da hoje Universidade Federal da Bahia, mantinha eu certo preconceito contra os que completaram o curso na Santa Cruz. Observei, logo depois, na minha Ionga advocacia de meio século, que me enganava: os da última nada deviam aos da primeira. Pelo contrário: muitas vezes tinham melhor preparo teórico e, quase sempre, melhor desempenho na prática forense.
Concede-se ao padrinho, mesmo sendo ele tão humilde, a liberdade de opinar segundo as suas convicções. Daí ousar vos dizer qual a melhor postura de quem recebe diploma tão honroso, como o que acabais de ter nas mãos, depois do esforço e até do sacrifício. Deveis possuí-lo como uma propriedade privada e egoísta? Não será o momento de uma profunda reflexão sobre o fato de que, para conquistá-lo, o preço foi mil crianças ficarem sem estudar? Ou, segundo estatística chinesa, o seu custo equivale à lida de um trabalhador rural ao sol, à chuva, ao desabrigo e até à fome, durante um século e meio?
Daí sermos obrigados a devolver um pouco desse privilégio que recebemos. Não por caridade, mas, sim, por um dever ético e de gratidão. Temos compromisso para com os que não têm a liberdade, a mais elementar de todas: de comer, morar, trabalhar, parir e criar os filhos.
Não é possível oferecer banquete só para um conviva. Muitos devem compartilhar para que haja festa.
Tenho o dever, também, e sobretudo, de vos falar das Letras, fanal da vossa Formatura. E destas deter-me principalmente na língua com a qual nos comunicamos. Evidente que seria impossível escrevermos como Antônio Feliciano de Castilho, o clássico dos clássicos, jardineiro da Flor do Lácio. Seria até ridículo, que me perdoem os puristas, estarmos a faiscar mesóclises para causar efeito.
Imagine-se na manifestação do amor (momento em que a palavra mais se adocica, transformando-se em nota musical), o jovem empregando amar-te-ei, beijar-te-ei.
Com certeza, seria amor despetalado com o nojo do pernóstico ou pernóstica. Que dizer do fi-lo, fê-lo e fá-lo (com licença da má palavra que adiante vai!) nos lábios do amante, sem se convencer
que o falar bem deve ter a suavidade da linguagem dos pássaros canoros, que nunca leram Antônio Houaiss e nem uma partitura.
Quem domesticou a fala portuguesa – ave selvagem vinda em revoadas de muitas terras para nidificar na Jangada de Pedra de Saramago e, só depois, no Brasil, usou somente 5.000 verbetes, conquanto dispusesse de 100.000 que já se reproduziam nos rochedos de Gibraltar. Acrescente-se que tal parcimônia incluía o imenso cabedal da mitologia grega e dos nomes geográficos. Camões foi um contido da linguagem.
Jamais recear ser acoimado de fugitivo do modelo de Frei LuÍs de Sousa porque também ele abandonou o latim e ajudou a construir Eça de Queiroz. Convencer-se de que o português do Brasil não é mais o de Portugal. Temos um dialeto, verdadeira árvore de Natal iluminada, se não quiserem compará-lo com um ramo de São João enfeitado com os frutos maduros dos nossos falares tupi, ao lado da graça das mulheres africanas, que há mais de trezentos anos já arredondavam os gerúndios, lubrificando os “ndo” de “fazendo”, “amando”, “indo”, transformando-o em “amano”, fazendo como no discurso dos jovens atuais. Sem falar na supressão dos “ss” no fim das palavras pelas mesmas razões da lei do menor esforço linguístico. Jamais assistiria o direito aos de além-mar de ferir Machado de Assis, acusando-o de africanismo ao empregar o verbo “cochilar”, de origem quimbundo, muito próprio, aliás, para quem trazia no sangue as origens de Angola. Como diríamos aqui o nome das árvores, dos animais, das comidas, dos rios, todo o mundo físico, afinal, sem os 20.000 verbetes dos indígenas que nos legaram, chegando, em determinado momento, a dominar a do descobridor, com a sua própria gramática escrita no ensino oficial, vindo a ser proibido quando o Marquês de Pombal pretendeu derrotar a influência dos jesuítas, que se comunicavam na língua nativa.
Seria cansativo trazer a opinião dos escritores brasileiros, desde o século passado, com José de Alencar e, neste, Monteiro Lobato e Mário de Andrade, que sempre defenderam uma língua brasileira, com todas as suas alterações de clima e do cruzamento das raças. Longe de mim apoiar o assalto do ianquismo ao nosso léxico.
Não pela língua em si, e mais pelo colonialismo econômico bem mais cruel que os das armas, porque degrada a alma do povo. Contudo, não podemos nos deixar conduzir pela propaganda que leva ao consumismo linguístico de outra língua, por tê-la como moderna, chique, poderosa, em detrimento da nossa, sempre mais rica e fecunda pelas tradições.
Existem princípios básicos para bem falar e escrever. O principal deles é não nos vestirmos hoje com fraque, cartola, calções doirados, chapéus de plumas alvas, portando bengala de castão de ouro, porque seria ridículo estarmos, neste momento, com tal indumentária. Como também não vamos repudiar Portugal porque traficou escravos, degolou índios, dependurou Tiradentes. Perdoemos, na lei maior da vida, e sejamos gratos porque nos transmitiram admiráveis heranças, como a nossa própria língua, que nos deu oportunidade de lapidar e enriquecer, encontrando a doçura nos lábios de mel de Iracema. No entanto, não devemos nos preocupar com os cabides dos pronomes oblíquos e esquecer a melodia das palavras no texto. O próprio Castilho chega a ser sublime ao dizer: “pode-se ter alinhado frases e frases, escrito páginas e páginas, com todos os “ff” e “rr” do vernáculo, e escrever com pena de pato em papel borrão... A vernaculidade só por si não salva a escrita de quem não tem a arte de exprimir em palavras, alguma coisa que resplandeça pelo pensamento ou pela beleza. Com todos os timbres do vernáculo essa prosa não terá o mínimo valor literário a não ser para figurar, aos fragmentos, em exemplos, nas gramáticas”. João de Barros, há quatro séculos, foi quem primeiro se referiu ao consentimento da oiça, como imaginava Rui Barbosa. A rigor, houve um equívoco do nosso Águia quanto a tal julgamento, segundo Edgard Sanches. Muito antes, “já os gregos estudavam os movimentos métricos da prosa tão cientificamente quanto um músico moderno estuda a harmonia e o contraponto”. E Quintiliano também, antes de João de Barros, ensinava: “O que a versificação é na poesia, a composição é na prosa. O seu melhor juiz é a orelha. – Optime autem de illa judicant aures”. Não com o ouvido português sendo o supremo arbítrio da nossa linguagem, como aconselhava Rui. É que os lusos rimam ainda o verbo “tem” (pronunciando “tái”) com “mái”.
Não somos pela anarquia gramatical, mas não nos confortamos com a compulsão de alguns em ter as regras de Portugal como única verdade no bem escrever. O importante é transmitir com clareza, ritmo e simplicidade a ideia, o belo e a emoção. Nossa língua não descende da nobreza. Vem dos rústicos soldados romanos. Somos, pois, um produto do povo, desde a cepa mais longínqua.
De mim, não sei se me senti mais envaidecido quando José Saramago, na sua contida adjetivação, disse que certo livro meu “é bom e teve prazer em lê-lo”, ou quando uma mulher da roça, Filomena do Poço da Cabra, ao ouvir a leitura da “Enxada” por uma freira (pois era analfabeta) falou a mesma coisa: “Estudaro uma lição lá na roça pra nós ouvi. Apreciemo. É bom livro”.
Para concluir, a língua é dinâmica. Daqui a alguns séculos dirão que no ano de 1999, no dia 8 de janeiro, falava-se um português (ou brasileiro?) arcaico.
As palavras são pedras toscas na correnteza do uso. Vão se arredondando, lapidando-se e depois ficam arquivadas nas gavetas do tempo ou na memória de poucos. Pelo que, temos que respeitar o homem da roça, quando ele pronuncia “adispois”, “fruita”, “trouve”, “soidade”, “mesturar”, “ingrês”, camafeus da linguagem que Camões também usou na sua epopeia em 1572.
E a sabedoria maior é investigar a verdade, sobretudo a do outro, que pode ser a verdadeira, invés da nossa. Digo-o, concluindo.