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Derramamento de sangue

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1997

 

                É ilusão acreditar que as manifestações sociais no Brasil sempre acabaram em banquete ou buquê de rosas.

Levantes houve em que escorreu sangue grosso por esses sertões e cidades – lutas dos negros, dos índios, de Canudos, do Araguaia e por aí vai. Sem o que, afinal, os indiferentes não se dariam conta dos problemas.

                Enfim, avanços da humanidade não aconteceram sem esvaziar veias, infelizmente. Mesmo os pacíficos de Ghandi; ele não as abria, mas os adversários o faziam até encharcar a terra de Tagor.

                Reparem no que está acontecendo no Brasil de hoje. A reforma agrária, que fora um tabu, levou muita gente à cadeia, à tortura e à morte, porque a defendia, chegando a derrubar um presidente da República (Jango) e a ser tida como desprezível e ridícula.

                Pois bem. Foi preciso que jorrasse o sangue dos trabalhadores e, sobretudo, de alguns donos de terra, para que surgissem, pelo menos, a retórica e tímidas medidas que aliviassem os donos do latifúndio chamado Brasil, controladores dos Três Poderes.

                Por último, os policiais. Tidos como violentos, corruptos, incompetentes, mas, quando cruzaram os braços, num protesto justo, verificou-se a falta que fazem à sociedade. Tornou-se necessário que o sangue de um comandante de Fortaleza ensopasse as televisões, para mostrar a pereba da Segurança Pública.

                As mortes silenciosas pela fome endêmica, as doenças já controladas no médio mundo (não é nem no primeiro) não despertam o interesse dos que mandam. Agora, não. É o sangue vivo, efervescente, jorrando, que dá o sinal vermelho do perigo.

                Só assim.

                Bom perceberem o que pode acontecer contra a tranquilidade, o ócio e o privilégio dos insensíveis, antes que se derrame o leite, em vez de sangue.

                Ainda houve nos dois episódios um fato novo; nunca mais o comportamento policial contra os trabalhadores sem-terra será o mesmo. Estes, em admirável gesto de perdão bíblico e solidariedade de companheiros, esquecendo rancores e a violência sofrida antes, irmanam-se com seus antigos algozes (algozes que o foram porque atiçados pelo regime, que, mesmo assim, se diz democrático).

                Será que vai ser necessário derramamento de sangue dos sem trabalho, sem casa, sem liberdade de comer (a pior ditadura), que está começando também, sem falar na guerrilha urbana pelo tóxico, jogo, prostituição que já constituíram um Estado dentro do convencional?

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).