Crônica de uma morte anunciada
Euclides Neto
A Tarde - Salvador-BA - 1988
Será que García Márquez pretendeu sugerir em fábula o que o homem está fazendo com a natureza?
No seu livro Crônica de uma morte anunciada, narra o homicídio de Santiago Nasar, que sempre sonhava com árvores, pássaros, e era alegre, pacífico, de coração aberto, mas “fora retalhado como um porco”. Todos os moradores da pequena cidade tomaram conhecimento de que o matariam. Todavia, nada fizeram para evitá-lo. A vítima, coitada, era a única pessoa que não sabia da sua destruição.
Fatalidade!
Todos comentavam o próximo holocausto. Podia-se até afirmar que o criminoso não queria executá-lo. Terminou, todavia, cometendo-o.
O amigo do assassinado, Cristo Bedoya, apanhou o revólver, a fim de que ele pudesse defender-se. Fê-lo, no entanto, após o homicídio, quando verificou que a arma estava descarregada.
Assim, também, quando a natureza estiver morta, verificaremos que a nossa pistola estava sem cartuchos.
Reconhecemos que matamos os rios, os mares, as águas subterrâneas, as matas e os ares. A televisão mostra as nuvens de gases tóxicos cobrindo cidades, e até pó de fezes empesta a do México — a mais populosa do mundo.
Queimamos o ano passado 20 milhões de hectares de florestas, formando desertos. As chernobys e a nossa cápsula radioativa de Goiânia estão aí. O vinhoto nas correntes. O mercúrio usado na exploração do ouro no primarismo das amálgamas. Somos uns suicidas. Há 12 meses um riachinho menino e veloz, nítido, a cabritar entre as carnaúbas, quase uma brisa azulada e líquida — em um ano! — virou uma coisa viscosa, gosmenta, grossa, babenta, escorrendo e não mais correndo, sacrificado pelos que usam indiscriminadamente os produtos de caveira e dois fêmures cruzados. De nada adiantou o esforço dos trabalhadores da área de reforma agrária de Xique-Xique, quando preservaram as árvores ribeirinhas, visando a proteger a sua puríssima água natural. Agora, o manancial não serve para nada. Nem para os animais. Está envenenado pelos que o exploram a montante.
As classes sociais dos andares superiores já não ingerem água do filtro. Usam a chamada mineral, suspeita, como as ionizadas. O oxigênio é cada vez mais usado pelos que se podem dar ao luxo de fugir ao ar público. Daqui uns dias o elemento indispensável à vida será de poucos.
Os edifícios transformam-se em caixas fechadas nas quais o bicho-homem tem que ficar confinado a sorver o condicionado. Os automóveis trancam os vidros. Sob a alegação de que nos defendemos da poluição (passaremos à história como a civilização dos sujos), criamos uma vida artificial. Dia virá em que sairemos (alguns privilegiados!) de casa direto ao carro, ou, quem sabe, daqui a algumas eras, a pituitária será substituída por afiados dentes capazes de triturar as impurezas sólidas do ar. Os pulmões passarão a ter funções iguais às dos intestinos.
Estamos, pois, matando o que há de mais essencial para a vida do homem. Não se trata só da beleza, da paisagem, do canto dos pássaros, dos coloridos. Assistimos de braços cruzados à desgraça. Poucos se mexem para evitá-la. Restam uns poucos, que já ficamos ridículos.
Há outra estória, contada por Herberto Sales em “A Porta de Chifre” (que não é fantástica nem ficção científica), do tempo em que os homens terão de extrair a lama das profundezas da terra e tratá-la para dessedentar-se. Evidente que aí não existirão mais rios nem lagos. Nem os mares com a possível dessalinização. Tudo já terá desaparecido. Aliás, coisa parecida já se pratica: o tratamento dos esgotos, sem desprezar os hospitalares.
Somos testemunhas do sacrifício de Santiago Nasar, omissos, sabendo que ele será assassinado.
Queremos o lucro, a industrialização desordenada, os produtos para exportar, o enriquecimento em nome da feitura do grande bolo do desenvolvimento.
Mesmo que devamos queimar as matas, poluir as águas, emporcalhar os ares. Como se a natureza não pertencesse aos que vão nascer.