As Invasões
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1993
Tribuna, 20 de novembro de 199
Euclides Neto
As Invasões
Se alguém disser que está ocorrendo uma invasão, todos entendem que a causadora é gente pobre. Somente os necessitados, portanto, a cometem. Puro engano. As maiores invasões foram praticadas, e ainda o são, pelos que tiveram e têm o poder político e/ou econômico. São as imensas titulações de terras, adquiridas ou regularizadas perante o Estado, ou simplesmente apossadas, até pelas armas, sob a passividade e/ou conivência de quem devia defender a coisa pública. Aqui na Capital, também. Se fizermos um apanhado, verificaremos que as chamadas invasões pelos despossuídos são um nada em relação às dos importantes, sempre organizados e bem assistidos juridicamente. A diferença é que o amontoado de casebres grita pela sua própria miséria, denunciando-se, suja a paisagem, ao contrário das usurpações pelos loteamentos asfaltados e espigões envidraçados. Exemplo: uma invasão pelos magros nas areias de Abaeté logo dá na vista. O mesmo procedimento feito por um consórcio moteleiro quase não é censurado, sobretudo se mostrar luzes coloridas.
Condena-se somente ocupação pelos carentes, pois que a outra é protegida pela falsa legalidade e não prejudica o visual. O barraco envergonha a cidade; o moderno prédio de apartamento é progresso. Um, condena-se; o outro, admira-se. Mas, se o leitor não tivesse onde abrigar família, o que faria? Pare e reflita com boa vontade. Você, neste caso, teria tanto culto à propriedade que se encontrava largada há tempos, sem nenhum sinal efetivo de posse direta, como se não houvesse dono? Ao lado do direito de propriedade não existe um outro que se chama estado de necessidade, ambos encastoados no nosso sistema jurídico?
A realidade é que aumenta a população e o espaço físico é o mesmo. Os solos de Salvador e dos seus arrabaldes são os mesmos de 1549. A população explodiu e, forçosamente, tem que ocupar um canto. Não há governo, nem polícia, nem justiça que controlem isso. Não se trata somente de uma questão de ordem legal. Caímos na fatalidade das leis da física que mandam a engenharia deixar um vazio entre corpos que se dilatam com o calor. Do contrário, arrebenta. Não há como enfrentar a dilatação populacional sem deixar espaço que a acomode.
Quanto ao campo, a realidade é a mesma. Não há trabalho para todos nem lugar para plantar nem para morar. Daí a ocupação de terras até particulares. Digo até, porque grande parte destas terras é do Estado.
Só há um remédio — só um — para evitar as invasões: segurar o lavrador lá fora, entregando-lhe parte dos quinze milhões de hectares ociosos. Fora daí é pretender acabar com a doença castigando o doente.
E não adiantam programas de casas populares nos grandes centros. Ao contrário: quanto mais fizer isto, mais os carentes são atraídos. E o fenômeno da loteria esportiva: quando alguém é premiado faz-se o alarde, levando todos a pensar que vão ser contemplados pela sorte.
O problema agrava-se. Os descendentes dos marginalizados estão nascendo, multiplicando-se irresponsavelmente, imiscuídos em todos os vícios e privações, sem os valores positivos dos primeiros que vieram do interior. Assalto passou a ser profissão, com sindicato inclusive — o do crime.
Sem Reforma Agrária, ordeira programada, portanto, não haverá trabalho — que é alegria, pão – e jamais resolveremos as dificuldades da moradia, da comida, da violência, da saúde, transporte coletivo, cidadania. E não evitaremos as invasões.