menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

As cobras e os cobras

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1985

 

Atualmente pode haver assunto tão importante quanto o destas linhas; mais importante, contudo, não existe. É que ele interessa diretamente a mais da metade do povo brasileiro e, por efeito, ao restante.

Trata-se da falta de soro antiofídico, fabricado no Instituto Butantã, em São Paulo, cujos denodados responsáveis estão roucos de soltar a boca pelo Brasil a pedir ajuda. E, ao que se anuncia, são poucos bilhões (hoje dinheirinho de cego) para adquirir serpentes, equipamentos e pagar pessoal.

Trombeteia-se que agora os sem-terra (milhões de criaturas) receberão o seu taco de solo pátrio. E não faltarão recursos para as desapropriações. E que a lavoura é prioritária. E que os cifrões para tanto sobem aos trilhões, já reservados. Falta-nos meios, no entanto, para assegurar ao agricultor o direito de não morrer da terrível peçonha. Deglute-se uma baleia e a piaba não passa na goela. Fala-se que já foi assinado um convênio. Mas é preciso urgência na liberação.

                Nem só o latifundiário improdutivo anda a prejudicar o homem do campo. Os picos-de-jaca, patronas (também conhecido por cabeça-de-patrão), rabos-brancos, cascavéis, pintas-de-ouro, viajam soltos, e, de tanto se comentar a falta do soro, já esta havendo cá fora a síndrome do pavor aos crotalus, botrhopus e companhia.

                Quando não havia a saudável ambição do lucro, do economismo, do empresarialismo, do eu te dou dois, mas quero de volta oito e, até o bem que se deseja ao próximo, é na esperança da recíproca em dobro, os lavradores tinham o zelo de mandar ao Butantã os jararacuçus e jabiracos. No tempo que não havia transporte: no máximo o trem de ferro lerdo. No tempo em que os chamados valores humanos eram sadios e pesavam na balança da consciência. Hoje, o Butantã informa que ninguém se dá ao trabalho de remeter as quatro-ventas, conquanto os aviões estejam aí a retalhar os ares de todos os brasis. Enquanto o surucucu-de-pindoba não entrar no pregão da bolsa do eixo Rio-São Paulo, ninguém é besta de perder tempo com lacinho de pegar os bichos-maus.

                Só há uma esperança para os enxadeiros que vivem a puxar cobras aos pés: um graúdo ser ofendido. Mas graúdo mesmo: dos que ficam na agulha da pirâmide, têm roça e passam nela todo domingo. E olhe que no miolo de Brasília já se viu gringo louro ofendido por bicho-do-chão (para os neófitos no assunto: nós tabaréus não empregamos o termo “picado” por ser imoral e “mordido de cobra” por fazer mal ao paciente).

                Não é que desejamos tal desgraça a um cobrão da República Noviça. Longe da nossa praga a mordedura de uma M. corallinus. Vamos adiante e voltamos: queríamos o dito pegado por uma jararaca, depois desta engolir rato, já com o veneno atenuado. Naturalmente que ao Excelentíssimo não faltaria o soro. Porém não seria mal se ele botasse sangue pela venta, ouvido, poros e outros orifícios e, até, fosse à boca da cova e voltasse. Aí saberia o que o Zezinho-da-Velha Catarina padece quando ofendido lá no esconso da mata, tendo de remédio a reza, a correia de veado, a beberagem de jaca-de-pobre, sumo de São Caetano, duas gotas de querosene, quando tem, e a vontade de morrer logo porque o sofrimento lhe estrepa os nervos.

                Dá vontade de fazer discurso e, como bom baiano, citar o Falconiforme de Haia, Rui Barbosa, quando se referiu ao Instituto Butantã: “honra do sábio que o dirige... do povo que dela se desvanece e do governo que lhe tem compreendido o valor”. Em 1914! Tenho dito.

                Vende o diabo de uma casa do Lago da Mordomia e resolve o caso do Butantã, gente! Aliás, se houvesse mais coragem, de quando em vez se levaria à praça um palacete daqueles para ir acertando contas miúdas: assim como o bom-pai-de-família em dificuldade vai torrando nos cobres as suas joias supérfluas, contanto que os filhos não fiquem sem remédio. No instante em que um citadino morre porque o hospital não atendeu (e olha que o infeliz já estava nas últimas) aparecem mil imagens para noticiar o furo. Já pensaram quantos estão sendo sepultados, neste exato momento, pela falta do soro?

                Retornemos também ao tempo da colaboração, enviando as serpentes ao Butantã por intermédio das companhias de aviação, linhas de ônibus, empresas de caminhões. Que se organizem entrepostos em cidades-chave, aproveitando IBDFs, EMBRAPASs, CEPLACs etc., e aí, fique alguém incumbido de encaminhar a preciosa fábrica de veneno (salve seja!) ao glorioso Instituto. Sem esquecer de liberar urgentemente as verbas.

                Lembrando-se que tem muita gente morando nas cidades, mas frequentando praias, sítios, indo ao campo com filhos e netinhos, sem contar os tais cobrões que também vão às fazendas, podendo ser a próxima vítima. Não é só gente do mato que é ofendida por bicho-do-chão: o risco que corre o pau, corre o machado.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).