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Arrastão dos vermes

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1993

 

                Nenhum dia era mais terrível para o menino da roça que o dedicado ao remédio de verme. Obrigavam-nos a tomar “Tiro Seguro”, suplício maior dos condenados até nas profundas do inferno. Os pais não anunciavam o dia. Se o fizessem, não pegariam as vítimas na cama, eis que fugiriam para os matos como se procurassem quilombos.

                O dia do quenopódio, portanto, virava segredo de família. De madrugada, os baixinhos não precisavam ser acordados. O fedor do óleo no copo o fazia. O pai e a mãe, armados de paciência, levavam, na dúvida, a sola convincente, o limão e a chave. Começavam a diplomacia: “Tome, meu filho, é para você não morrer. Ficar corado. Segure e aperte bem a chave para não vomitar. Cheire o limão”. A vítima repugnada, prenunciava o pior. Se os torturadores conhecessem o quenopódio, tê-lo-iam usado como o meio mais eficiente para arrancar confissões.

                Tomado o purgativo, em jejum, que se prolongava até o efeito, vinha a glória das mães: “O meu botou 25”. A outra: “Isto não é nada; o meu, 48”. E por ai se festejava o glorioso campeonato das lombrigas.

                Pois bem, quem sofreu o processo, e cuida hoje dos meninos carentes da sua cidade resolveu dar-lhes remédio de verme, coletivamente. Como quem vacina contra pólio, que, por sinal, sempre matou menos. Mesmo assim, um médico foi consultado: “ E daí, é possível?”. O doutor, mais preocupado com os encéfalos, ângios e outras tribuzanas, disse que não havia contraindicação. Mas seria prudente um exame de fezes prévio. Ora, ora, se tiver de fazer tais exames, o dinheiro não dá nem para comprar o remédio. E o diagnóstico está escrito em luz fluorescente no rosto e na pança dos atacados. A intuição diz — quem tiver estatística mande-na — que grande parte da fome dos meninos, que moram e brincam nos esgotos, é causada pela verminose. Se não existe comida para eles, como arranjá-la para alimentar o rebanho de vermes que está comendo no mesmo prato, na desleal competitividade?

                Daí surgiu o programa em Ipiaú do “Arrastão do verme”. Simples: a professora do lugar (este Brasil devia ser governado pelas professoras primárias, do juiz de paz ao presidente da República) prepara a festa e distribui a guloseima. Sim, já não é o “Tiro Seguro”, à base do terrível quenopódio, mas um gostoso xarope, adorado pelos famintos.

                Depois o ferro, que antigamente era “o reduzido”, enrolado em papelotinhos. Infelizmente, hoje, ele vem em frasco, caixa e outros luxos, custando mais que o conteúdo. Dirão que não adianta, porque aparece a reinfestação. Sim, mas não existe reinfestação maior que a fome.

                O certo é que a saúva não acabou com o Brasil; mas ou se acaba com o verme, ou o verme acaba com o Brasil.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).