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Ainda a reforma agrária

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1991

 

Ante a afirmativa, em artigo publicado em A TARDE de (8.1.91), de que 1a “Secretaria da Reforma Agrária e Irrigação não conseguiu irrigar sequer uma horta e assentar o lavrador sem-terra”, classificando-a de inútil, gostaríamos de esclarecer:

Muitos não conhecem bem as verdadeiras dificuldades fundiárias existentes no Brasil, especialmente na Bahia. Não sabem das graves distorções na legalização das terras devolutas, da distribuição das ociosas e, pior, da defesa dos que alimentam a população, sendo, portanto, responsáveis pela sobrevivência de todos nós. No passado, os chefes políticos do interior agiram como senhores feudais. Foram sucedidos pelos doutores, altos funcionários, latifundiários improdutivos, grileiros, que continuam sendo os causadores daquilo que este conceituado jornal, na mesma coluna, sempre combate, com acerto e veemência: o êxodo rural provocado pelas injustiças e falta de amparo aos posseiros-lavradores.

É bom repetir que nada é mais importante para o homem do que a terra. Essencial à vida. Dela vem a comida e a constituição dos ossos, nervos, cérebro, carne, esperma. Nela constrói-se a morada. Talvez por ser tão importante é que não se lhe permite a democratização, poucos querendo detê-la, gerando o caos nas cidades inflamadas pela violência, fome, falta de trabalho.

A classes dominantes (perdoem-me o jargão) sempre quiseram assim, pois uma secretaria de Reforma Agrária, que se determinou a coibir os abusos, é uma ameaça aos privilégios dos que avançaram sobre as terras que deveriam ser de todos os que a exploram efetivamente.

Argumenta-se que a Secretaria da Agricultura pode acumular as duas funções. Mas, o que se observou, fechado o Ministério da Reforma Agrária, foi o da Agricultura não ter sensibilizado para com as dores dos milhões de “brasileiros e brasileiras, minha gente”, abandonados à violência de todo matiz e colorido. Com a Secretaria da Agricultura respondendo pelas duas atividades, isso não mudaria em nada. E o momento atual cobra mais atenção para com a tragédia da terra. Para trabalhar na reforma agrária não basta ser um técnico competente, ou um político hábil, ou um grande criador de búfalo. É preciso ter virtudes de missionário, arriscar a vida ante as ameaças contra a vida, tantas vezes noticiadas. Não basta envelopar-se no jaquetão, empoar-se, aspergir perfume francês no sovaco, espigar o peito na pose de autoridade e cercar-se de odaliscas. Carece de paciência, conhecimento da realidade da roça, estar disposto a ouvir e fazer do órgão uma referência para os que o procuram angustiados, escorraçados, desesperados.

Só para elucidar, longe de pretender ferir melindres: temos vários ministérios, cuidando da guerra. Aeronáutica, Marinha, Exército, além de outros com iguais galões. Ninguém sugere fundi-los em um só, da Defesa, por exemplo (como, aliás, acontece em outros países). E não somos um país guerreiro, muito menos colonizador. Por que, então, a Reforma Agrária (secretaria ou ministério), referente a seguimento tão fundamental à paz e à perpetuação da espécie terá que ficar reduzida a um miúdo departamento, funcionando em qualquer socavão, discriminado, tendo à frente algum político frustrado, indiferente e azedo?

Na Bahia, durante o funcionamento da secretaria criticada (defende-se a própria e não o seu primeiro titular, de inexpressivo mérito), foram desenvolvidas as seguintes atividades: 164 projetos de assentamentos, envolvendo 885 mil hectares, com mais de 10 mil famílias em seus lotes; mais de 334 projetos, implantados, beneficiando 34 mil famílias de pequenos lavradores, assistindo 170 mil pessoas: 41 projetos de irrigação, 20 funcionando, área total de 1.450 hectares, sendo que 21 ficaram praticamente prontos; 800 mil hectares discriminados pelo Interba; expedição de 30 mil títulos, construção de 12 mil serviços de abastecimento de água entre açudes, barragens, caixios, poços, sistemas simplificados; controle da grilagem, dando assistência efetiva às vítimas sempre presentes nos locais de conflito, solucionando muitos. Barrou-se o latifúndio da água, regulamentando o seu uso.

O mais importante, contudo, foi criar uma profunda consciência em defesa dos posseiros, mudando completamente o comportamento do Estado, resistindo às pressões políticas e econômicas, arrecadando terras, com a ajuda da organização dos trabalhadores, distribuindo-as, e conseguindo avanços significativos na Constituição estadual, onde foram incluídos dispositivos pelos quais as terras públicas vendidas obrigam o adquirente a reservar até 10% para a cultura de subsistência dos assalariados; e a comunicação aos sindicatos de trabalhadores rurais antes das titulações.

O Banco Mundial reconheceu, através de relatórios, o trabalho desenvolvido na Bahia, pelo que estendeu os empréstimos a todas as áreas de reforma agrária, em qualquer parte do estado, mesmo fora da região inicialmente, contratada.

 Se não se fez mais, foi devido ao sistema que também ficou longe de resolver as dificuldades dos outros agricultores, inclusive os grandes (do cacau, soja, laranja, café), em crise e penúria. Não seria a reforma agrária que teria o condão de solucionar a saúde, a educação, a comercialização.

É, pois, em defesa da reforma agrária, que nos achamos na obrigação de apresentar tais esclarecimentos, rogando que sejam publicados, levando em conta que A TARDE sempre teve compromissos com a verdade e a Bahia.

 

Euclides Neto, advogado e escritor, é ex-secretário da Reforma Agrária.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).