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Abolição do latifúndio – 1988

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1988

 

               Se nem estória sei contar, quanto mais escrever história, ciência de muito saber e pesquisa. Mas que me perdoem os maiores do pódio, inclusive o Cid, que tem o Teixeira, dos de cepa, pois o meu é da roça; e o João Reis, doutoríssimo, que mais vive no Tombo e Londres, ciscando os cacos dos casos dos negros.

                Tenho matutado sobre a reforma agrária e seus adversários, exatamente neste ano da graça de 1988, o do Centenário da Abolição da Escravatura. Chego à conclusão de que, escorrido mais de um século, há coincidências nos acontecidos dos 88. Vejamos:

“Nossas classes proprietárias... que na posse da terra... haviam durante gerações consecutivas falhado completamente dos seus deveres sociais”, e o Brasil “tinha chegado a uma situação financeira sem remédio... Vós vos queixais da situação da província! Mas essa situação não é mais do que o resultado da situação geral do Império”. “O nosso orçamento tomou proporções colossais, que assentam, como já disse, sobre estes quatro pilares carcomidos: a apólice, a dívida externa, o papel moeda, o déficit”... “e já se descobriu que há muito tempo nós pagamos as nossas dívidas com os empréstimos que fazemos.”

                Parece escrito hoje. “...Se diz que o Projeto Dantas é um projeto comunista”. “Comunista, por quê? De que forma o projeto introduz neste País a menor sombra de comunismo? Será porque no Art. 10 trata de libertar os escravos de 60 anos?”

                “Entre tantas instituições úteis imagináveis, nenhuma entre nós seria mais proveitosa ao Estado do que uma escola em que se ensinassem aos nossos homens de fortuna os deveres da propriedade e as relações de riqueza particular com as ideias de justiça.”

                “Sabeis que reforma é essa? É preciso dizê-lo com a maior franqueza: é uma lei de abolição que seja também uma lei agrária.” São palavras de Joaquim Nabuco em o “O Abolicionismo”.

                Em 1880 fundou-se a “Sociedade Brasileira contra a Escravidão”, semelhante à Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), a de 1980.

Criou-se também a “União Agrícola” contra a Abolição da Escravatura, que se reunia na Igreja Matriz de N. S. do Rosário de Cachoeira. Hoje existe a União Ruralista (o mesmo que agrícola — Aurélio) contra a reforma agrária. A única diferença é que no presente, quem se reúne nos templos são os trabalhadores. Também àquela época solicitava-se do parlamento brasileiro medidas eficazes e enérgicas de modo a evitar o aniquilamento da lavoura... “desta importante província pelo fato da emancipação imediata do elemento servil”. Cid Teixeira — “O Projeto Dantas”. Igualmente hoje se é contra a reforma agrária, alegando-se que ela vai aniquilar a produção.

                E mais: “Como é sabido por todos, o governo... organizou um projeto de lei sobre o elemento servil com o fim de libertar mais da metade da escravatura, sem prévia indenização do valor dos escravos aos senhores, sem respeito ao direito de propriedade garantido pelo Art. 179, § 22, da Constituição do Império”.

Parece lobismo na atual Constituinte.

                Os escravocratas chamam-se a si mesmos de emancipacionistas. Presentemente, ninguém, mesmo os mais radicais da direita, se diz contra a reforma agrária.

“Em Havana, os negros revoltaram-se e mataram todos os brancos, os negros ali sabem como endireitar os brancos.” Pierre Verger— “Fluxo e Refluxo”. Em Cuba, no presente, já houve a sangrenta revolução!

 No momento, também, há muita divisão entre os trabalhadores, puxados pelos PCs e congêneres, como antigamente entre os nagôs, jêjes, mundubis, ussás etc., movidos por questões religiosas ou de origem.

Não faltava o êxodo rural, como nos dá notícias o próprio Verger.

“Comerciantes (leia-se bancos) tornaram-se proprietários de fazendas pela cobrança de hipotecas. Foi um espinho doloroso na carne da classe social dominante no Brasil — os senhores latifundiários.” Luiz Henrique Dias Tavares — “Comércio Proibido de Escravos”. Sem tirar nem pôr é o quadro atual dos proprietários que estão asfixiados pelos bancos e, por exemplo, na região do cacau, também pelas firmas exportadoras.

 Não faltava, inclusive, quem alforriava por “alívio de minha consciência pelos bons serviços que me forneceu a escrava Rosa”. Assim, também, os sensíveis de hoje dão casas, pedaços de terra, montam pequenos negócios para seus trabalhadores rurais, depois de longos e reconhecidos trabalhos.

Joaquim Nabuco em discurso no Parlamento, 1879, defendia-se da acusação de agitador pelo fato de ser abolicionista. Outros, hoje, padecem da mesma agressão por defenderem a reforma agrária.

E o deputado Bezerra Cavalcante, em aparte ao brilhante deputado, referindo-se à dívida do Estado, concluía:

“E esse há de vir para os comissários, bancos e capitalistas, que são os únicos privilegiados neste País.” Estamos, portanto, com todos os fatores de antes de 1888, quando se aboliu a escravatura. Agora é a vez da abolição do latifúndio. E o quanto antes, para que não percamos tempo e não sejamos retardados perante a história.

Tentemos não ser os últimos a concretizar a reforma agrária, como o fomos perante a emancipação negreira. Sem sangue, menos teimosia, menos orgulho. Façamo-la ordeiramente, convencidos de que é necessária, urgente, inexorável, evitando violências e injustiças.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).