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A escolha das terras nas desapropriações

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1996

 

                Faz dias, neste mesmo espaço, tratei do cuidado que se deve ter na seleção dos assentandos, antes de entregar-lhes os lotes. Agora, ocupo-me da qualidade da terra, onde também reside o sucesso ou não da reforma agrária.

                Sabemos que os bons solos já estão aproveitados, bem ou mal, pelos fazendeiros, o que os torna mais difíceis de serem desapropriados. Restam os chamados de segunda, ácidos, pobres em nutrientes. Também expropriam, por influência política e corrupção, terras completamente imprestáveis.

                Neste último caso, desperdiçam-se recursos, desmoraliza-se o INCRA e frustra-se o sem-terra, porque as áreas estéreis (o lavrador as conhece como ninguém) nada produzem. Nem a poder de adubos, calagens, aração e gradeamento. Nem irrigação dá jeito. Mesmo sabendo-se que os trabalhadores são capazes de milagres. Na região cacaueira — em Poxim e Sarampo — aconteceu isto. Quase toda a gleba é de terceira categoria. Mas aproveitaram os apertados vales, beira de riachos e estão produzindo. Portanto, não é sem razão que rejeitam o solo completamente inútil.

                Também existem terras que ainda são públicas e o suposto dono tenta negociá-las com o INCRA. Aí vale tudo, inclusive o incentivo para que trabalhadores as "invadam", instalando-se o fraudulento conflito.

                Certa feita, fomos convidados para visitar uma fazenda lá nas divisas com Goiás, entre os rios Pratudão e Pratudinho. Eram mais de 20.000 hectares. O suposto proprietário pôs em Brasília um avião ao meu dispor, facilitando o acesso. Fiz coincidir o encontro com uma das muitas viagens para conseguir verbas federais, durante o governo Sarney. Confesso que nunca fui tão bem tratado na vida. Virei marajá. A aeronave, com espaço para seis pessoas, levava o que se pode chamar de conforto: frutas, sanduíches, doces, bebidas a escolher, apesar de sermos três pessoas, com o comandante. Além da presença de uma menina muito bonita só para me servir.

                Quando o avião chegava, a primeira coisa que o cidadão me mostrou foram os “invasores”, colocados por ele na margem do Pratudão, para forçar o ato ato desapropriatório.

                Descemos numa pista roçada na véspera. Casas e escritórios abandonados. Uma tapera. O vigia plantara verduras no fundo da sua residência, Nem feijão gurutuba conseguia colher naquele areão desértico. Mais adiante, o reflorestamento raquítico, quase todo morto, que servira para justificar o gordo financiamento, em grande parte desviado para outras atividades, já se via.

                O cidadão informou que para efetivar-se o acordo só precisava que o Interba reconhecesse o domínio, baseado em dois pareceres favoráveis de grandes juristas. Só que os documentos apresentados não eram daquela gleba, mas sim de outra e em outro lugar — a célebre grilagem. Os pareceristas também foram ludibriados nas informações prestadas.

                E o Interba de boa-fé já encaminhava a legalização da propriedade, pois que a falsa cadeia sucessória apresentada vinha de antes de 1850. Mandei sustar tudo, depois de, pessoalmente, estudar cuidadosamente o processo.

                A desapropriação dos terrenos não foi possível por causa da péssima qualidade do solo, que ainda era do estado e não do ardiloso cidadão. Restou meu nojo, pois ele, sabendo que eu crio gado de raça e sou apaixonado por cabras, insinuou que pelos meus garrotes pagaria o preço que eu pedisse, e tinha um pequeno rebanho puro de saanen em Petrópolis à minha disposição, tudo a depender do acerto com o INCRA.

                Precisa ter cuidado com fazendas oferecidas!

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).