menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

A colhedeira do ministro

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1990

     O Ministro Cabrera Mano está dizendo que a meta do Governo é assentar 60 mil famílias. Muito pouco para um País que tem milhões de sem-terra e centenas de milhões de hectares improdutivos. Afirma ainda que não existe dinheiro, sequer, para quitar os títulos da dívida agrária contraída anteriormente. Que dizer dos recursos para investimentos nas áreas já distribuídas! Depois vão alegar que a reforma agrária não deu certo.

     Gravidade maior é a anunciada pelos jornais: o representante do Ministério no Congresso será o eleito Ronaldo Caiado — inimigo açu dos que lutam por um taco de chão.

     O pior é que o Mano só acredita na megalômana empresa rural, já tendo aprovado o projeto desenvolvido pela For New Holland, que aconselha o uso da sua colhedeira de feijão, a FNH, cujo "sistema mecanizado é direto sem a utilização de mão de obra". A notícia do jornal mostra o Ministro dirigindo a colossal máquina e a informação de que ela é encontrada em toda rede de representantes da For New Holland, sendo a única no Brasil capaz de diminuir a perda de grãos de 12 para oito por cento. Houve ainda cerimônia oficial na demonstração das vantagens da milagrosa, com a presença do Sr. Cabrera. Evidente que o garoto não esteve ali fazendo propaganda. Mas debaixo desse pirão tem carne.

     Aí me lembro do Nordeste torrado, com pouca água ou nenhuma, e menos energia ainda para irrigação, e da velha com a sua enxadinha gasta, e o neto ao pé, plantando gurutuba — o punhadinho de feijão, negado ao estômago, para virar semente.

     Vejo terras calcinadas, empedradas, com seixos e cascalho, empinadas nas serras, nos esconsos e socavões, mas com gente morando, temendo essa modernidade que visa diminuir a mão de obra, antes de saber onde aproveitá-la. Esconjuro projetos com viabilidade econômica, despreocupados da viabilidade social! Mais das vezes são elaborados para mostrar tecnologia não experimentada, de resultado duvidoso, armados para beneficiar terceiros.

     A coisa é tão grosseira que, das duas uma: ou o Ministro faz propaganda da Ford por ingenuidade, ou, na melhor das hipóteses, não conhece a realidade brasileira. Foi o projeto agroexportador mecanizado que expulsou do oeste do Paraná um milhão e duzentos mil pequenos lavradores. Enriqueceu o Estado (viabilidade econômica), porém desgraçou aquela gente (inviabilidade social).

     Quero ver tais máquinas salvadoras nas áreas de reforma agrária. Se não têm verba para liquidar as TDAs, distribuir sementes e crédito, como vão adquiri-las? E mantê-las? E se tivermos tantas máquinas potentes e funcionando bem, para aonde irá a mão de obra excedente, desqualificada, pelo menos por enquanto?

     Esse pessoal parece que teve muito brinquedo em menino (quartos cheios de carrinhos, aviõezinhos, trenzinhos, tratorzinhos, urutuzinhos) e agora pretende vadiar com as coisas sérias em nome da modernidade e do exibicionismo. O outro não pode ver um jato, um submarino, um disco voador...

      Outra vantagem apresentada pela colhedeira é que pode ser montada pelo usuário. Quantos saberão montá-la? Ou será mais um ardil para que o comprador já a deixe na oficina da vendedora, pagando a menina dos olhos! Se para trocar um carburador de automóvel, prefere-se levá-lo a uma autorizada, imagine-se um trambolhão desses, altamente sofisticado, sendo montado pelo lavrador!

     Pretender saltar do bico da enxada de duas libras, que não chegou ainda ao arado de madeira dos faraós, para a pomposa Ford New Holland é, no mínimo, temeridade.

     Daí para desconfiar das intenções desse governo é um passo. O Senhor Presidente da República afirmou muita coisa que não está cumprindo (proteção à poupança, manutenção dos ministros, distância dos que serviram à ditadura). A quebra do compromisso percebe-se à luz do dia, visível e palpável, materializada em atos. E o subjetivismo dos propósitos também explicitados nos palanques, e que não pode ser avaliado na prática, como ficará? Tanto mais com esse pardo Congresso, ora eleito, e a notícia cada vez mais veiculada de que a revolução social desapareceu com o fim do Leste Europeu! Antes, ainda temiam o povo organizado e cediam algumas migalhas, pressionados. E, agora, que imaginam a classe trabalhadora emasculada e, pior, elegendo seus próprios inimigos para representá-la!

     Só resta uma esperança: entenderem que os assaltos e sequestros são a cara degenerada de uma revolução. Aí voltará o medo, e os aristocratas do Governo perceberão o risco que continuam correndo.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).