A cidade e a cabra
Euclides Neto
A Tarde - Salvador-BA - 1998
Estava no interior de uma agência de viagens aéreas, na Índia, quando um gentil pai de chiqueiro buji, com a intimidade de velho amigo, começou a me puxar a camisa, dando as boas-vindas pela minha estadia em sua pátria. Pedi a alguém que documentasse o delicado gesto. Guardo a foto como uma relíquia. Tudo se passou no centro de Amedabad, cidade de três milhões de habitantes, maior que Salvador, num país que já dominou a energia atômica, o que lhe dá status de alta tecnologia.
Em Belo Horizonte, visitei pontas de rua, onde a prefeitura fornecia uma cabra e assistência veterinária completa, para que as crianças tivessem leite farto e de excelente qualidade. A obrigação era do beneficiário passar uma cria fêmea a outra família. O poder público ainda emprestava reprodutor de boa linhagem. Só governantes de visão e ternura são capazes de fazê-lo. É melhor, incomparavelmente melhor, que importar leite, gastando divisas preciosas para ter um produto de qualidade inferior. (Digno de aplausos, também, é o que estão fazendo em Salvador: o aproveitamento das verduras que sobram na Ceasa, enlatando-as e distribuindo-as aos carentes em forma de sopa. São as coisas simples e baratas que resolvem.)
Essa lenga-lenga é para rogar aos prefeitos do semiárido que não proíbam a gentinha miúda de criar no oitão do rancho da cidade-sede a vaquinha do pobre.
Alegam que as inocentes incomodam, invadindo quintais ou ficando na pista. Tudo bem. Reconheço que são malinas e até transmitem tal procedimento aos filhos de criação. Aliás, por ser um destes, sou testemunha: me criei com o leite delas e, aos 73 anos, continuo traquinas. Contudo, qualquer inconveniência é melhor que a fome e a morte por desnutrição.
Na verdade, o prefeito quase sempre chega ou descende do interior do município e quer esconder a condição de criador de bode. Começa a achar sinal de atraso mantê-lo no meio dos humanos que se julgam civilizados. Uma espécie de complexo caprino, que Lacan desconhecia. Outro aliás: até o esterco da cabra é decente — já vem peletizado, em forma de enxuta azeitona, sem o hediondo e malcheiroso do dos outros animais, principalmente do homem, pelo que existe o ditado: “Mais limpo que fiofó de cabra no verão” (fiofó é eufemismo, o nome rima com caracu).
Claro que não se vai, como na terra de Gandhi (o maior homem que já nasceu e tinha uma cabrinha que o acompanhava e o alimentava), deixar no Corredor da Vitória as guzerás e nelores. Nem se chegará ao luxo de acolher uma búfala dentro da própria casa, para aquecer a família, como também vi no sopé do Himalaia, Nepal. Apesar de reconhecer a necessidade do calor, até para a alma dos homens.
Um reparo: cachorro bonitão e feroz, que mata menino, mulher e transmite raiva, tolera-se. As mães de leite dos meninos pobres, não.