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A chuva e sol

Euclides Neto

A Tarde - Salvador-BA - 1989

Chegam os dois! Chuva em torneiras despejadas aqui perto. Sol de rachar a terra acolá. Não se sabe qual o pior, quando em despropósito. Uma surge de maneira aguda, matando, carregando, empobrecendo, deixando famílias inteiras sem os seus entes e teréns. O outro mina o corpo, enfraquece a coragem, mata igualmente, só que de modo insidioso, sub-reptício, silenciosamente.

Os atingidos procuram a Secretaria de Reforma Agrária, que acolhe a Defesa Civil (Cordec), pedindo socorro. Uns: cobertores, roupas, comida, água limpa e reconstrução e construção das casas levadas pela loucura das águas. Outros: solicitam caminhão-pipa, cesta básica, frente de serviço.

Os primeiros querem a ajuda pelas roças afogadas, arrancadas, erosadas-destruídas. Os derradeiros falam que o feijão-gurutuba (que só precisa de duas águas: para nascer e para cozinhar) o sol comeu.

 Alguém olha a sequidão e diz que choveu e não precisa de ajuda: a caatinga virou esmeralda. E não sabe que a chuva de tão pouca não fez água, a neblina temporã não chegou na hora certa, caiu fora da quadra, não deu mais para semear — passado o tempo. Verde ficou a vegetação agreste, acostumada com as enticanças do céu.

Não fazendo água e não dando para plantar é a sede acompanhada da fome. Sede mesmo, privação total d’água, que não tem para beber ou para lavar a mulher recém-parida e a sua cria. Alguns ainda passam de avião e o coxinilho verde, embaixo, mostra que tudo vai bem. E lá adiante adjetiva o relatório na frieza das almas cegas.

A inundação agride mais, pois os cadáveres estão ali, debaixo da terra do motel, desnudos, no último esgar de um amor que encontrou a morte no clímax de ambos. Os óbitos são os contados no sadismo das sensações noticiadas. Mais um, mais 10, agora uma criança de quatro anos — o número chega a perto de 100. A chamada comunicação ceva-se no doloroso espetáculo. A catástrofe pela chuva fere mais, comove mais, as vozes se levantam: dos que cantam, dos que mandam e dos que podem. A dor e a miséria estão concentradas na geografia dos espaços curtos.

 A seca, não. É sorrateira. Vai bebendo as vidas, solvendo-as dissimuladamente no silêncio pardo das noites, dos dias, das madrugadas. Os jornais não sabem, não dizem.

 São as duas agonias, não é mais novidade — virou rotina.

 Nas autoridades que não seguraram as encostas topa-se o culpado de não retê-las com os arrimos. E o ódio encontra o alvo nos que governam e não puderam evitar as construções dos dependurados nos cabides dos morros. Ao menos diminui a dor quando constrói o culpado (ou suposto). Lá fora, nos longes das caatingas, até o ódio se perde pelas distâncias, sem encontrar a mira.

Chuva e sol, criadores, amados, donos da vida, mas que, no descompasso, matam, destroem, virando apocalipse.

Resta em nós uma parte de sentimento de culpa mesclado com a lembrança de que o dilúvio de Noé não é de hoje e as secas vêm de perdidas eras. O que não se justifica é a imprudência com que os tratamos até hoje, convenhamos.

 E não sabemos mais como cantar a modinha da infância: “Vai a chuva e venha o sol; vai a chuva e venha o sol”. Ou mudar o santo, enterrando-o em seguida, depois da surra, para que faça chover.

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).