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A cabra e o semiárido

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1989

 

Não quero meter-me a gato mestre. Mas de caatinga e cabra tenho a obrigação de entender um pouco. Da última porque fui criado com o leite dela e da primeira, em decorrência das saudades e lembrados dos meus pais que sempre se referiam a tempos e terras melhores das que adotamos como nossas — as cruas e cruentes matas frias das Tesouras hoje Ibirataia no então Rio Novo, Ipiaú depois, o que me levou, mais tarde, a ter sempre um pedaço de chão caatingado para criar cabra, gado pé-duro, plantando e perdendo as safras de milho e feijão.

                Evidente que toco de ouvido sem ler a partitura.

Há tempos bato e rebato na corda da viola muda de que o semiárido tem solução prática, efetiva ao alcance das burras vazias. Inicialmente, até imaginava estar eu a dizer uma heresia: “A caatinga terá que ser tratada como os climas temperados. França, por exemplo, na qual por ano, seis meses são o gelo e as criações, obrigatoriamente, ficam abrigadas dentro de casa fechada, comendo feno e a ração guardada. E o lavrador precisa armazenar também a comida para a sua família. Caso contrário, morrem de fome. E, para provocar, acrescentava: pena que não haja seca todo o ano. Aí parece maluquice. Como força de expressão queria dizer que se houvesse seca todo o ano, o lavrador não ficaria esperando a hipotética, a consequente colheita, sem guardar nada, passando a ser mais prevenido.

Falava tais diabruras quando conheci o Dr. Thierry. Eng. agrônomo M. S., ora na Bahia, em convênio com a Secretaria da Agricultura. Trocando ideias sobre o assunto, meio cabreiro. receoso de blasfemar contra a ciência, sugeri uns gráficos das atividades dos dois climas e ele nos entregou. Bom dizer que o M.S. está nas caatingas há tempos, com experimento real, de chiqueiro, espinho de quiabento e aproveitamento da rama, sabendo que a vocação do semiárido é a pecuária.

Vejamos os regimes da França e a caatinga: na França, as cabras ficam abrigadas da neve durante o frio — de novembro a abril (mais ou menos seis meses). Sem protegê-las, não escapa nada.

Em maio, tempo quente, os animais são colocados nos pastos cultivados, para dar uma tosa.

                Daí (junho, julho, agosto, setembro) saem do pasto e este é fenado.

Em outubro o rebanho tosa novamente os pastos cultivados.

Durante o período em que o pasto é cortado para o feno, os animais ficam em pastos naturais — meado de maio a meado de setembro. Ou ficam nos restos de colheita (parte de julho a meado de agosto).

Reparem que nossa caatinga mais braba tem melhores condições do que a França. Tanto que fomos capazes de criar (só na Bahia) 3.800.000 cabeças na base do deus-dará, sem vacina, prendendo nos chiqueiros, de umbu em umbu, para a marcação e puxar os peitos quando chegava o leite. A França, com toda a técnica, apriscos e pastos cultivados foi a 900.000. Tudo isso para dizer que não precisamos de abrigos nem guardar tanta comida para os seis meses de gelo. Feno, temos o natural das folhas caídas.

Agora, precisamos e ter um pouco de ração durante os meses críticos, que não chegam a quatro, ficando a criação solta sob o imenso aprisco azul, durante o gelo, digo, o Sol. Atente-se ainda que, durante o inverno lá, não podem ter nenhum verde para arraçoamento, enquanto aqui, durante a seca mais teimosa, poderemos contar com a palma (água e comida), sisal (fibra e petisco), a algaroba que se chove (o verbo é reflexivo mesmo, meu querido Oleone Coelho Fontes, da bela nação de Uauá), e se tiver o feno de capim-búfalo, é manjá.

                Qual é o nosso mal? É que ficamos esperando a chuva todos os anos. E não nos prevenimos. E ela falha. Aí morre tudo: roças, bicho e gente. A cabra ainda resiste. Quando a seca não é desesperadora, ela até gosta. A vegetação nativa, sábia, reserva o seu próprio de comer, joga as folhas fora, recolhe-se, adormece, economizando energias e espera parcimoniosamente as chuvas, agindo como se houvesse gelo.

Repare o esforço que o francês realiza para manter o seu rebanho. Aqui podemos tê-lo em campos naturais o ano todo, cuidando somente de oferecer às recém-paridas e animais fracos alguma ração, durante somente algum tempo. Enquanto lá, somente ao longo de quatro meses podem ficar nos pastos naturais, mesmo assim com 45 dias também com restos de cultura.

Ora, se temos o imenso aprisco do céu, clima ideal, sem umidade e ventos, com forragens naturais gordas de proteínas, só precisamos de armazenar o feno de capim-búfalo, amarrado com caroá do mato, plantar palma (palma! palma! palma!), algaroba, leucena. E imaginar que todo ano vai ter seca, precisando guardar comida e botar na terra planta resistente, preservando a vegetação nativa como sagrada. Tal raciocínio vale para as pessoas. Lá se guarda batata e carne defumada. Aqui não precisa defumar porque tem carne fresca de bode o ano todo, “defumando-a” se estender ao sol. E guardar abóbora, que dá para sobejar e jogar fora. E, se quiser luxo, aproveitar o porco na época da engorda, cortar em pedaços, fritar, recolher em latas com gordura e tudo, retirando depois as porções para o almoço, como ainda se fez em algumas regiões da Bahia e Minas.

Vamos também plantar cereais, cautelosamente, sabendo do risco. E pensar na irrigação possível. E, importante, cuidar de melhorar a produção de leite do rebanho que significará comida, emprego, renda. E, para chegar a tanto, não é bicho de sete cabeças. Basta uma seleção bem orientada dos animais já existentes, sem muito doutorismo exibicionista. Precisamos é de presença no campo, colada, olho no desempenho do programa, acreditando como o sacristão deve ter fé na missa.

                Tudo isso é para ser discutido com os técnicos e curiosos do assunto, que entendem de agrostologia, genética e caprinocultura. Se estas notas de nada servirem, podem ter o mérito de provocar os interessados.

                Não temos dúvidas de que estamos corretos. Sobretudo se as práticas forem efetuadas por quem mora na terra, planta, pastoreia o rebanho e aproveita a numerosa mão de obra familiar, cortando e amassando o feno, picando a palma, catando as vagens de algaroba. E, sobretudo, copiando o europeu, que começa por apropriar o próprio salário e é quem primeiro acorda e chega ao campo, já deixando a mulher ordenhando o rebanho. E todos os de casa se lançam à labuta. Aliás, como fazem os nossos sertanejos, que só precisam de uma extensão rural correta. Não serve, portanto, para quem reside em Paris, digo, cidade, e vai a fazenda de tempos em tempos respirar o “ar puro do sertão” e reclamar as despesas que estão altas, desconfiando que todo empregado é preguiçoso.

                E a água? É outro capítulo. O semiárido chove o suficiente para que, sendo devidamente guardada, não falte para ninguém. Ainda aí a palma, com os seus 92% líquidos, daria uma boa ajuda.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).