Uma prateleira sortida
Hélio Pólvora
Apresentação em “Comercinho” - primeira edição - 1979
De Ipiaú, um dos municípios baianos produtores de cacau, vem a mensagem forte e cálida de Euclides Neto. Autor de vários romances, entre os quais Birimbau, Os magros e O patrão, ele merece há muito tempo, audiência maior. Está nos bastidores, ou a um canto da plateia, quando precisa ser também chamado ao palco e mostrar-se. Porque Euclides Neto tem o que dizer.
Talvez esta frase seja um lugar-comum. Mas nem todas as frases feitas têm cheiro de bolor. Algumas contêm, de fato, a sabedoria da coisa vivida e palpável, por isso voltam, atualizam-se, reverdecem. Ter o que dizer, numa época em que tantos escritores se recolhem a uma redoma e se entregam a um jogo de paciência com as palavras, é fundamental.
Comercinho do Poço Fundo está longe de ser um lugarejo parado. Em geral, os aglomerados humanos da chamada “última fronteira” palpitam de vida por trás da fisionomia aparentemente serena. Comercinho do Poço Fundo é o ponto de referência de uma dessas regiões que, segundo os tecnocratas de hoje, deixaram-se atrasar na marcha do progresso, mas que, de repente descobertas pelo espírito empreendedor, transformam-se em núcleos geradores e irradiadores de riqueza.
Ali, a livre empresa aliada ao aventureirismo e à rapinagem derruba matas, semeia fogo na vegetação, planta cacau e engorda gado para o açougue. A renda nunca esteve tão maldistribuída. Ou se possui muito, ou nada se tem. A definição cunhada pelo cinismo desses nossos dias — “quem trabalha não tem tempo de ganhar dinheiro” — encontra no Comercinho uma ambiência natural. Trabalham, por exemplo, os posseiros espoliados. Um deles é Bonifácio, com a mulher e a penca de filhos. Mourejou, cultivou, sonhou — e na hora de valorizar o que é seu, tem a ingenuidade de confiar na justiça. Acaba na estrada, sem eira nem beira, ou esquentando a velhice, resignado e sem memória, à porta de uma casa de sopapo de barro.
Euclides Neto conhece essa gente, acompanha o seu destino maltraçado, reúne suas vivências e acontecimentos. Vê a burguesia crescer na figura ladina de seu Beto, o comerciante de secos e molhados que a folha local chamaria de “abastado e próspero”. Vê as esperanças morrerem na palavra fácil do deputado caçador de votos. Este é um dos lados ou, como diz o autor, uma das “porteiras” de seu sentido e triste romance. Do outro lado estão a menina que os caprichos da família rica transformam em boneca e, mais tarde, em rameira embrutecida; a mulher que, dormindo na escuridão do casebre, amamenta uma cobra; e Boca Preta, castrado no seu sadio instinto de viver.
Comercinho tem de tudo na sortida e feia prateleira de seu universo. Euclides Neto faz o balanço do estoque, detendo-se em cada gênero, indignando-se ou divertindo-se. Como todo bom conversador, ele faz os seus preâmbulos. Gosta de apalpar o terreno das emoções alheias, antecipar as consequências para o que vai dizer. A estruturação deste romance desenvolve-se de maneira a apresentar não um entrecho único com os subtemas, mas de preferência o quadro que se desdobra em outro quadro e, no fim, forma o painel. E a linguagem, muitas vezes, é um achado: a língua brasileira inventiva, rica de sintaxes, solfejos e semânticas.
Falamos, no início, em mensagem. Eis um romance com um teor, com uma significação além da literatura. Impossível abstraí-lo de considerações econômicas, sociais, históricas, humanas etc. A denúncia é poderosa, o sentimento de solidariedade nos contamina. Euclides Neto dá em Comercinho do Poço Fundo um testemunho marcante das condições de vida do brasileiro marginalizado do interior.
Ele colheu e processou os dados. Seu regionalismo é a célula que reproduz o universo.
Existe hoje, como existiu ontem, um establishment literário responsável pelo injusto esquecimento de bons ficcionistas e poetas. Pautados pelo gosto e condicionados pela informação de um José Veríssimo e outros autores de histórias da literatura brasileira, quantos bons nomes hoje ignoramos? Ainda agora isso acontece com autores de nossa geração. Euclides Neto, isolado nos longes de Ipiaú, sem as fanfarras da promoção literária, vem nos provar ainda mais uma vez que, para escrever o romance brasileiro desta hora, de todas as horas más, tosco porém sincero, prescindimos de teóricos, franceses ou de quaisquer latitudes.