Francisco Ferreira de Lima
Orelha em “O patrão” - segunda edição - 2013
Mais por preconceito que leitura detida, é hábito supor-se que a literatura de intervenção social, aquela que põe em cena o mundo dos explorados e ofendidos, que se costumou, não sem uma certa má vontade, chamar de literatura engajada, reduz-se ao episódico, com personagens rasas, agindo não por elas próprias, mas em função da ideologia do seu criador.
Pode até ser que seja assim com quem faz literatura pensando mais em ideologia do que em arte — e aí estaríamos diante da empulhação no sentido mais estreito que o termo possa ter, pois nada mais danoso à literatura que fazê-la serva de propósitos a ela estranhos. E a ideologia é um corpo estranho à literatura, porque o objetivo desta é oposto ao daquela: enquanto a primeira escamoteia verdades porque crê única a sua, a segunda as revela com a força detonadora da metáfora, que lança estilhaços de sentido em todas as direções, sobretudo em direção à própria ideologia.
Quem quiser ver esse processo de perto, de a literatura sobrepujar a ideologia, não deve deixar de ler esta pequena e notável novela de Euclides Neto. Embora estejam aí todos os ingredientes da literatura engajada — o patrão explorador, o empregado humilhado, o líder sindical —, tais elementos funcionam mais como pontos de partida do que como pontos de chegada, pois as personagens, de tipos sociais no começo, pouco a pouco se individualizam, ganhando vida própria e verniz psicológico. E tudo feito com tal consistência que faz o leitor esquecer-se de que se trata de literatura de denúncia social, tal o mergulho no interior das personagens, coroado, no final do texto, por um clima denso de fantasmagoria que as envolve, fundindo limites do real e do sonho, melhor dizer, do pesadelo.
E assim acompanhamos o drama do vaqueiro Tomaz, que, depois de dar um tiro no patrão para não ser denunciado por roubo, humilhação que não cabe em sua ética, tortura-se em angústia e remorso ante o quadro por ele criado. Remorso e angústia que só fazem crescer ante a resistência física do patrão que se recusa a morrer, o que leva Tomaz a uma encruzilhada mental, resolvida no plano da narrativa — e só assim poderia ser feito — através do recurso do fluxo de consciência. E acompanhamos também o drama do patrão, a arrastar-se pelas brenhas da mata, já sem distinguir entre a realidade e a fantasia, qual um zumbi, à espera de uma solução que não virá. Dois corpos (e duas mentes) dilacerados, cada um a seu modo.
Literatura engajada é assim. É aquela que trata tanto dos foras quanto dos dentros da gente, eis o que ensina Euclides Neto nessa grande novela pequena. É ler para ver.