Painel da opressão nas terras do cacau
Elieser Cesar
Apresentação em “Os magros” - quarta edição - 2012
Tributário do romance social dos anos 1930 no Brasil, em que pontificaram nomes como Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, o escritor baiano Euclides Neto (1925-2000) é o porta-voz da luta de classes nas terras do cacau da Bahia. Em seus romances Os magros (1961), O patrão (1978), Machombongo(1986) e A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (1996), que em dissertação de mestrado denominei de “tetralogia dos excluídos”, Euclides Neto dá continuidade ao Ciclo do Cacau desbravado por Jorge Amado a partir de onde o romancista de Terras do Sem Fim parou: na consolidação da lavoura cacaueira, resultado de um processo civilizatório com sua carga inexorável de violência, as terras adubadas por sangue, na metáfora amadiana. Não interessa a Euclides Neto a expansão e a consolidação da lavoura cacaueira, mas sua decadência e as relações injustas de trabalho no campo.
Euclides Neto vai tratar, com ardor militante, da injustiça no campo cristalizada pela mais completa reificação do trabalhador, sem direito a nada, humilhado, esfomeado, escorraçado e perseguido nas terras antes fartas do cacau. Nos seus romances não vemos mais, como em Jorge Amado, a ligação telúrica do coronel com o solo fértil da promissão. As terras servem apenas para que o proprietário possa viver de rendas.
Esgrimindo a máxima de Jean-Paul Sartre, expoente do engajamento do artista no século XX, para quem o dever do escritor é tomar partido contra as injustiças, de onde quer que venham
, Euclides Neto escreve com uma clara intenção pedagógica, originária de sua opção pelos humilhados e ofendidos: denunciar, numa crítica radial, os resquícios do feudalismo no campo. Para Euclides Neto, a terra, farta e generosa, deveria ser de todos, pois o campo se oferece aos homens como solução possível para reduzir as desigualdades sociais. Euclides Neto é, portanto, um escritor político. Foi talvez o último escritor militante de esquerda a empunhar sua pena na Bahia para dar oportunidades às “vozes sufocadas” (expressão do crítico e professor de literatura Cid Seixas).
Diríamos que Os magros é a melhor demonstração do pendor militante do romance social de Euclides Neto. Escrito com a técnica do contraponto, novamente encontramos bem mais acentuado aqui o leitmotiv da obra do escritor do sul da Bahia: a luta de classes nas terras do cacau. Num diálogo intertextual com outros dois romances, Cacau, de Jorge Amado, surgido em 1933, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938. Com o primeiro, Os magros tem em comum a denúncia do latifúndio e de suas consequências sociais. Com o segundo, o relato de uma família pobre na luta desesperada pela sobrevivência num ambiente hostil.
Inventário de contrastes
Os magros é um inventário de contrastes, a história de duas famílias opostas em tudo, diferenciadas, de um lado, pela opulência e pelo consumo ostensivo e, de outro, pela miséria de quem vive na fronteira da não existência. Na Fazenda Fartura — atentem para a ironia do nome —, pertencente a doutor Jorge, o agregado João e sua numerosa prole (a mulher Isabel e nove filhos) passam fome e toda a sorte de privações. No outro lado da cerca desse inferno social, está o próprio doutor Jorge, para quem o latifúndio serve apenas para dar lucro e permitir uma rica principesca em Salvador, à custa da exploração dos trabalhadores alugados de sua fazenda.
O proprietário já não tem o menor apego pelas terras herdadas do pai, que, por sua vez, a roubara do pai de João (aí, temos, talvez, uma ponta frouxa do romance dada à coincidência que nos parece forçada). Detesta o campo e entrega as terras ao cuidado de um perverso capataz. Mora na capital e quase não visita a propriedade, dedicando seu tempo a colecionar pedras preciosas e a sustentar uma jovem amante, ao passo que mantém a mais completa ojeriza pela mulher, uma neurótica, sem atrativos físicos, dentuça e maniática, que cuida de uma boneca como se fosse sua filha, levando-a para o médico e fazendo até um seguro de vida em benefício do brinquedo inanimado.
E João, a mulher e os filhos, como vivem na fazenda? Deixemos que o próprio João fale:
—Vida dura, meu Deus. Vida de cachorro. Estou mais magro. Parece que os meninos estão aniquilando. Tudo magro. Você, Isabel, está uma cazumba. Esse menino termina virando assombração mesmo. Só tem osso.
Já doutor Jorge pensa em fazer regime. Seu almoço é constituído de feijoada com pernil de porco, cozido, fatadas oleosas e muito dendê nas peixadas. Glutão, tem uma digestão intranquila. Em sua fazenda, os trabalhadores invejam os bichos, que são mais bem alimentados.
Para matar a fome de seus magros, João, o agregado, não tem a quem apelar. Nem sequer o armazém da fazenda lhe vende fiado. Não consegue nem um facão novo para aumentar o rendimento do trabalho, e assim ganhar mais alguns trocados. Por isso tem que trabalhar com um chibute (facão velho e avariado). Comprar o instrumento de trabalho é o objetivo maior de João, mas a peça custa o equivalente a uma semana de seu salário. A compra de um simples facão, que deveria ser oferecido pelo capataz, equivale, em termos de sonho e cobiça, à aquisição de uma pedra preciosa pelo proprietário da Fazenda Fartura. Que vigoroso painel da opressão pinta Euclides Neto com as tintas vermelhas da indignação e a paleta da opção ideológica pelos deserdados da terra, ou melhor, pelos espoliados do campo!
Há quem aponte o maniqueísmo como um defeito do livro. Porém, para Euclides Neto, pouco importa. Não há meio-termo. Patrão é patrão, explorador, insensível, ganancioso, perdulário. Não presta. Nem sequer a mulher dele, feia, burra e neurótica, é poupada da ira sagrada do escritor-militante. Empregado é empregado, vítima indefesa de uma engrenagem que o condenou à servidão e à pobreza irremediável.
No livro, O caráter social da literatura no Brasil, o crítico Fábio Lucas encontra a explicação para a fórmula do choque social que Euclides Neto utiliza em Os magros:
No fundo, livros assim concebidos se destinam a uma catequese indireta, procurando levar o leitor contra a ordem existente; apelam para a repulsa moral a situações concretas de aniquilamento do ser humano.
Dialética cruel
Neste romance, o autor baiano apela para uma cruel dialética, o trabalho do pobre, João, produzindo a riqueza do fazendeiro, doutor Jorge, e, assim, a riqueza deste perpetuando a pobreza daquele. Cruel porque nessa dialética há a tese e a antítese, sem a síntese humanitária. Não podia ser de outra forma, pois os personagens de Euclides Neto se arrastam no limbo de uma sociedade que os relega à condição de objetos de uso e de exploração.
Esta nova edição de Os magros, junto com as obras completas de Euclides Neto, chega em boa hora para aumentar a visibilidade de um autor que, há muito tempo, deveria ter uma recepção à altura de seus livros.
Nesta apresentação, que muito me honra, sintetizei ideais expressas no meu livro O romance dos excluídos: Terra e política em Euclides Neto. Se assim o fiz, é por acreditar que, após uma nova leitura, em nada alterou minha percepção de Os magros. Devo dizer ainda que tive o prazer de conhecer e conversar com o escritor, homem culto, elegante, lhano, uma espécie de campesino das letras, pois trazia arraigado em si o sentimento telúrico pelas roças do cacau.
A partir das poucas conversas e, mais ainda da leitura de seus livros, ousei traçar um breve perfil do artista das roças do cacau.
Nesse autor, o marxismo é temperado e amenizado em sua virulência histórica, pelas influências menos radicais de sua juventude, principalmente Gandhi, Jesus Cristo e Tolstói. Do primeiro, Euclides Neto recolhe o pacifismo messiânico; de Cristo a comunhão, a fraternidade e a opção preferencial pelos pobres; de Tolstói, o amor pela terra e pelas coisas do campo.
Este, Euclides Neto, a repetir que a esperança não envelheceu. Tem razão, Euclides, não envelheceu!