Véra Motta
Orelha em “Comercinho” - segunda edição - 2014
Para alcançar o Comercinho do Poço Fundo, Euclides Neto, conhecido apanhador de causos, abre as cancelas que cercam o povoado e permite o acesso às suas ruas de nomes curiosos, onde habitam os esquecidos do mundo, bichos e gentes expulsos pelas vilanias dos grandes proprietários de terras.
Cada porteira que se abre é a ocasião de o leitor ouvir o relato de um dos muitos causos que abundam no romance, cujo padroeiro, São Benedito, também é um esquecido das gentes: Boca Preta, o jegue safado; Vem-de-Longe, o cavalo arrimo de família; Napoleão, o galinho frustrado; Baralho, o manga-larga que deu desgosto ao patrão; Muçurana, a cobra que mamava, entre outros. Das gentes, temos Ernestina, a roxinha que virou boneca; Bonifácio, que confiou na justiça e perdeu todas as posses; para não falar de Feliciano, o administrador que maluqueceu de tanto esporro que levou do doutor Juarez. Gente graúda: seu Beto, o bom, doutor Renato, o deputado corrupto, e doutor Juarez, o advogado esperto, também comparecem.
Em seu caráter insular, o povoado, para onde converge tudo o que resta seco, esgotado que nem bagaço de cana passado no espremedor, tem suas leis: quem está dentro não sai, quem está fora pode invadir.
O compromisso de Euclides Neto com o leitor revela-se, sobretudo, no manejo da palavra, como quem rola a pedra no cuspe, até deixá-la redonda, moldando-a até o ponto de quebrá-la, com seu rico repertório lexical e sua sintaxe sincopada, de frases curtas, que têm o sabor de máximas, indo de “beiço a rabo” no relato. Na solidão do escritor e testemunha do envilecimento de gentes e de bichos da região, Euclides Neto faz paralelo do seu ofício ao de quem cria gado: quem o faz quer agradar, e, não sendo possível, espera que o escrito acabe no espeto da gentinha do Beco de Maria Paca.
Fábulas e epístolas transitam no romance, com a cumplicidade do narrador, que faculta ao leitor a possibilidade de pular cercas (capítulos), e ir direto ao ponto de seu interesse. Ao supermercado, o escritor, com suas escolhas, privilegia a bodega de secos e molhados, ou o armarinho, com seu arsenal de miudezas, dispondo-as nas prateleiras com a propriedade de quem tem norrau, e extraindo humor de situações as mais cruéis por que passam os desafortunados personagens, bichos e gentes do Poço Fundo.