Regina Junqueira
Orelha em “A enxada” - segunda edição - 2014
Escorraçada dos becos de Jequié com seus doze filhos, uns pendurados no peito, tantos se arrastando ao seu lado, outros na lembrança amargurada, Albertina resolve entender a ofensa da patroa como um conselho providencial: “Seu lugar é no cabo da enxada”. Uma mistura de humilhação, ódio e alegria. E de liberdade. Em A enxada, a neurose e a violência do drama urbano, que infundem a grande temática da literatura atual, acabam aqui: na página 9. Daí segue mostrando o reverso da “civilização”, ironicamente sua origem: a roça.
Enquanto trança esteira, chapéu, coveia roçado, acha abelha pelo cheiro, levanta casa de palha em uma tarde para abrigar os filhos, traz comida para dentro de casa sem precisar ir à venda, com fartura maior que na geladeira da ex-patroa, faz mezinha com folha e raiz sem precisar ir à farmácia, faz panela, pote, cuscuzeiro, sabão com as coisas do mato, tira sal da terra, fia e tece roupa de prestança, chega a matar onça para proteger criação e roçado, repassando o que aprendeu na infância para os filhos, Albertina trabalha caprichosamente para Euclides Neto. Catalogando bichos e plantas, enriquecendo o registro da linguagem local e demonstrando com a maior didática o modo de fazer e de viver na caatinga.
Com a mesma efervescência voluptuosa da terra, os animais, incluindo Albertina, compactuam seus instintos, homenageando a vida em todo seu esplendor. Rodeando lascívia com pudor, crendice com realidade, Euclides Neto recorre a sutilezas e metáforas de singular poesia.
Uma história simples como a verdade, uma volta às próprias coisas. Apenas por duas ou três alusões referidas na cidade revela-se passar nos dias de hoje. Contando casos através do narrador, da voz da cadela de estimação e de diálogos supimpos, A enxada, de leitura rápida, faz o leitor voltar para cavoucar e recavoucar a boniteza genuína dessa literatura rural.
Se Euclides Neto sugere chamar sua história de primitivista, é talvez porque, humanista que era, se permite assim encaminhar seu romance para o final que ideava para seus conterrâneos. E o agreste na sua caneta, como na enxada de Albertina, vira de um refinado sem-par.
Citando Almeida Garret, o autor transcreveu: “A literatura é filha da terra, como os Titãs da fábula, e à sua terra se deve deitar para ganhar forças novas quando se sente exaurida”.