Hélio Pólvora
Orelha em “Os magros” - segunda edição - 1992
Com a técnica do contraponto, alternando cenas da família de um trabalhador rural e da família de um fazendeiro, o romancista Euclides Neto apresenta um vigoroso documento da servidão em certas propriedades agrícolas.
Dois quadros bem distintos: num casebre no fundo do mato, Fazenda Fartura, município de Ipiaú, Bahia, o agregado João, sua mulher e filhos morrem de fome. Os meninos comem terra. O trabalhador sequer tem dinheiro para comprar um facão e, por causa disso, o gerente lhe reduz o ganho semanal. O que ele recebe no sábado mal dá para comprar farinha e tripas.
Sobre João e sua família pesam ameaças constantes de desemprego. É que as fazendas de cacau não admitem trabalhadores com muitos filhos. Os meninos vivem escondidos nos matos com medo de gente.
Grassam as doenças resultantes da desnutrição crônica e da falta total de higiene. A família fica feliz quando a morte leva um menino. É menos um para sofrer. É menos uma boca a alimentar.
Enquanto isso — e vem aqui o contraste gritante — o fazendeiro dr. Jorge, que tem mil hectares de cacau safreiro, vive num palacete em Salvador. A esposa estéril é uma neurótica: embala uma boneca como se fosse filha, alimenta o desvario de que a boneca Rose-Marie é uma criança de verdade, chega ao ponto de consultar pediatra, fazer tratamento caro com um médico inescrupuloso. O marido ocioso coleciona brilhantes e frequenta a alta roda com a amante jovem e loura.
Euclides Neto escreve sobre o que sabe, sobre o que viu. Nada de “literatura”. O que sai de sua pena é a verdade narrada sem rebuscamentos de estilo, em linguagem direta e franca, na qual predomina o vocabulário regional reelaborado artisticamente. Os magros parece um filme. As sequências se sucedem e, na sua pungência, provocam a solidariedade do leitor; ou o contraste da vida vazia do fazendeiro faz brotar a revolta, cria dores na consciência. É um documento literário e social, um grito, um libelo, este romance de Euclides Neto.
Os magros nesta edição inteiramente revista pelo autor resulta da sua experiência e testemunho diretos. Não há quem, lendo-o, fi que indiferente à sorte madrasta de João e seu pessoal. O João de Ipiaú é o Fabiano do sertão alagoano. Sempre tocado de fazenda em fazenda e ganhando apenas para continuar vivo — até que o corpo aguente, até que a alma transmita algum ânimo.