O tempo é chegado
Gerana Damulakis
Artigo em “O tempo” - A Tarde - 2002
A Editus — Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus — já tem no catálogo um número expressivo de bons títulos, além de primar por edições cada vez mais bem cuidadas. Recentemente, foi lançado mais um volume importante da Editus, não apenas por conter um texto póstumo de um baiano reconhecido e considerado no mundo das letras, mas por refletir a sensibilidade e o espírito que dominam a linha de partida da editora.
O tempo é chegado, título da reunião de contos de Euclides Neto, chega ao público como mais uma oportunidade para se fazer uma leitura deste que foi um romancista e contista cujo tema primeiro era a terra. O personagem, ou melhor, os personagens euclidianos são produto da terra em todos os aspectos e facetas da personalidade. Extremamente enraizado, o escritor nascido em Jenipapo, no interior da Bahia, foi criado numa roça e, depois de concluir os estudos em Salvador, viveu em Ipiaú, região grapiúna. Esse amor pela terra levou-o a ser prefeito de Ipiaú e a criar a “Fazenda do Povo”, um ousado empreendimento que mereceu aplausos e amedrontou os que até hoje temem por uma real reforma agrária.
Tal homem, tão ligado à gente, tão amante da terra, não poderia deixar de escrever sobre essa gente e essa terra. Em seus romances e em seus contos, a terra é símbolo da vida e da morte e os que nela trabalham são tantas vezes plasmados quase como se estivessem num poema de louvor, de canto ao homem do campo. Vestido, pois, de amor e também de indignação quanto ao sofrimento imposto aos trabalhadores e suas condições precárias de vida, não é com compaixão, mas antes com admiração, que Euclides Neto conta sobre a força, a determinação e o quanto há de suportabilidade nessa gente com quem ele lidava.
Um texto intitulado “Euclides Neto: o mais próximo de Machado”, assinado por Jorge Medauar, abre o volume. Nele, Medauar lembra a universalidade da obra de Euclides, aquela universalidade que só alcançam os que cantam bem a sua aldeia. Conclusão russa que é admirada até hoje e talvez não tivesse virado uma expressão tão repetida se o mundo não conhecesse um Tchekov, um Tolstói, dedicados que foram em contar sobre suas gentes e suas aldeias. Mas Medauar vai mais longe, comparando a limpidez e a clareza do texto euclidiano ao modelo literário de Machado de Assis. E assim é, pois o escritor e amigo soube ver e enfatizar as virtudes do escritor de Ipiaú. Ele também grapiúna, Medauar lançou seu último livro de contos intitulado Viventes de Água Preta, na Coleção Literatura Regional Brasileira, pela Editora Rio Fundo, em 1996. A região grapiúna é rica em escritores, porque de suas terras emanam o talento e a vocação, e há qualquer coisa de mágico no aroma dos frutos de cacau. Tanto é assim que, sem forçar a memória, chegam imediatamente vários nomes fortes da literatura baiana oriundos das terras do sul, afora o nosso grande escritor Jorge Amado.
Nas “orelhas”, Júlia Teixeira Bussius escreve sobre a perda de Euclides e a demora em assimilar tal perda, mas acredita que essa obra póstuma “soa como um final satisfeito, concluindo uma vida plena”. Podemos ainda dizer, creio, que O tempo é chegado era necessário para as letras baianas, para se registrarem essas letras e elevá-las aos patamares de qualidade de uma época.
Há ricos contos no volume O tempo é chegado, desde “Os ciganos”, que guarda a linguagem local, até os casos engraçados, como “O cirurgião”, sobre um materialista que acaba tremendo de medo de almas do outro mundo, inclusive da alma de um papagaio, e “Conversa de maridos abandonados”, só para citar alguns exemplos. O volume traz deleite, o prazer de ler textos que ampliam a nossa visão de mundo, na medida em que abrem outra janela.