O romancista Euclides
Hélio Pólvora
Apresentação em “Machombongo” - segunda edição - 2014
Tive a ventura de conhecer pessoalmente Euclides José Teixeira Neto e com ele partilhar momentos – na realidade poucos, pouquíssimos – da última fase de sua vida. Atraiu-me, de pronto, a simplicidade do homem. Enganosa simplicidade. Por trás da superfície serena, dos modos educados, da teimosa insistência em se mostrar despojado e ingênuo, eu vislumbrava conflitos, erudição, vontade política de agir, além da natural simpatia.
Não sei o que mais admirar no perfil desse Euclides baiano de Ipiaú, nascido no lugarejo Jenipapo, diplomado em Salvador, prefeito, secretário estadual da Reforma Agrária e Recursos Hídricos no governo Waldir Pires, e muito provavelmente governador da Bahia, se, pré-candidato natural ao cargo, na campanha sucessória de 1990, uma facção do PT não impedisse uma necessária composição de forças. Perdeu a Bahia o concurso do administrador público impecável, popular sem ser populista, criativo, devotado e de uma austeridade a toda prova. Decerto ele teria sido peça valiosa no sonhado encaminhamento da reforma política nacional e de uma reforma fundiária pacífica. Conhecia de perto o agricultor nato, aquele que enfia a lâmina da enxada no chão como se fora a relha do arado, e combatia o proprietário rural predador, aquele que se apossa da gleba pela grilagem.
Foi cidadão e político vocacionado. Foi semeador. A carta que deixou aos prefeitos e os mandamentos de reforma agrária constituem um legado que somente a estupidez e a ganância de políticos profissionais censuram, tolhem e condenam ao esquecimento.
Difícil distinguir, na personalidade rica e facetada de Euclides Neto, o traço predominante. O que mais admirar nele? O desarmado agente político-cultural de toda uma época, criador da Fazenda do Povo, perseguido e preso em 1964 e evangelizador dos militares que o interrogaram? O fazendeiro ambientalista, preservador de fauna e flora? O advogado defensor gratuito de posseiros espoliados? O escritor ficcionista, autor de Machombongo?
Cito aqui o Euclides romancista por último no preconcebido intento de acentuar o aspecto sincero da sua trilha ficcional. Ele se encaixou facilmente no pressuposto óbvio, e no entanto pouco praticado, de que um escritor de ficções deve privilegiar temas de seu íntimo conhecimento, oriundos do desenvolvimento do ser ou resultantes de circunstâncias psicossociais que testemunhou ou de que participou.
Somente poderiam passar pelo filtro temático os fatos, impressões, sentimentos e conclusões emitidos pela sensibilidade tocada e ferida de quem escreve romances e contos. O ficcionista ouve, vê e sente – e terá, assim, de ser necessariamente verdadeiro no que transmite. Euclides Neto, que em outras atividades comprovou um compromisso o mais possível factual com a realidade, pôs nos seus romances, e em especial em Machombongo, o que havia colhido e esmerilhado.
Sente-se que o romance pulsa, palpita. Não é texto frio. Não é objeto inanimado. Nada tem de fantasia, de devaneio. Está inserido na forte temática brasileira do romance da terra, ou romance de 1930, de veia nordestina, afluente de José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos. Euclides Neto o compôs nos anos 1980 a partir da experiência pessoal direta, a partir do envolvimento emocional. Conviveu com personagens, situações, episódios do romance, talvez o mais estruturado e entretecido de sua bibliografia. Por isso, pela fidelidade aos compromissos vivenciais que tanto se refletem na escrita, o autor comove. Mais: convence. Finda a leitura, o romance haverá de permanecer como documento em que acreditar, porque emanado da sensibilidade exposta.
Assim acontece também em A enxada, saga de uma roceira que, fazendo da enxada o seu sismógrafo, criou família, adquiriu propriedades, subiu na escala social. Vislumbro uma metáfora acerca do ato de escrever e de lavrar a terra. A enxada euclidiana é o suor banhado pela inspiração, o esforço roçado pela asa efêmera do talento. Fere a crosta dura em que vicejam ervas daninhas e, aos poucos, enquanto restam forças para puxar o lixo até os pés, a pele reaparece – a nua, a diáfana, a escura pele da terra, morna como um abraço, ansiosa como lábios abrochados para o beijo, quente como a lavra das ânsias reprimidas. História absurda nos dias de hoje? Nem tanto. Comoveu-me anos atrás um relato jornalístico sobre Eufrásia, sósia da personagem euclidiana, de rugas no rosto, mas de movimentos ainda lestos, aos 75 anos.
Outra ventura que não a da convivência e amizade me foi ensejada: a de editar este Machombongo. Estava eu em Itabuna, após longa permanência no Rio de Janeiro, quando me veio às mãos o original do romance. Impressionou-me a fluência e o encadeamento das partes e episódios, a firmeza do relato, a pungência característica de Euclides disfarçada nas entrelinhas, pronta a cooptar o leitor por obra da empatia.
O romance data de 1986, publicado em Itabuna, Bahia, pela Cacau/Letras. Era o primeiro título da Coleção Adonias Filho, que infelizmente não prosperou. “Grande romance de histórias acontecidas, este Machombongo”, dizia eu na orelha do livro. Acontecidas, com efeito, dentro dos padrões de realismo de Euclides Neto, comprometido basilarmente com o testemunho a dar. As personagens eram conhecidas do autor, em especial o protagonista mais destacado – misto de fazendeiro de cacau e gado e político, um arremedo moderno da antiga figura daquele senhor de baraço e cutelo, todo-poderoso, cruel, do qual dependiam muitas vidas; em suma, personalidade geocêntrica e egocêntrica que o romancista não chega a retratar de forma maniqueísta, embora nas entrelinhas descarregue nela o seu desagrado.
Euclides estrutura e imprime consequências a um relato largo acerca desse indivíduo, a quem o voto de cabresto ou comprado entrega um cargo de deputado. Está visível o lastro sociológico do romance, que transcende a trajetória de um ignorante e atrabiliário potentado do interior para entrar no território das ciências sociais e políticas, com apoio na análise psicológica.
Pouca vezes o ficcionismo brasileiro traçou retrato mais perfeito, mais acabado de um coronel, que já existia, com seus desmandos e prepotência, muito antes do golpe militar de 1964, mas que aproveitou o regime de força, durante os anos da longa ditadura, a ponto de se transformar em novo senhor feudal, com supostos poderes sobre o campo, a comarca, a vida dos habitantes.
O romancista acompanha com minúcias e veracidade psicológica a escalada desse deputado na riqueza e no poder. De toda uma região na boca do sertão baiano, entre o baixo sul e o sudoeste, é traçado e composto um painel que tem o vigor rústico de um Portinari, de um Diego de Rivera – e ao mesmo tempo lampejos de arte sutil. O sofrimento das populações pobres, o estado de miséria e quase abandono em que vivem, desigualdades e injustiças sociais, a par de outras denúncias, legam a este romance – o grande e largo momento criador de Euclides – uma força que incorpora o documentário.
As tentativas de reação instigadas pela esquerda revolucionária e pela Igreja da Teologia da libertação também se fazem presentes, bem como as retaliações consequentes. Nos capítulos finais o romancista recria o movimento místico de retorno às terras da serra de Machombongo, último reduto de justiça e pureza em região devastada pelo latifúndio e a inoperância do poder público.
De todos os romances de Euclides Neto, concebidos a partir de teses e alinhamentos que ele havia amadurecido em suas jornadas existenciais, será Machombongo o ponto de equilíbrio, o grau certo de maturidade, a construção caudalosa de acabamento exato. Além da evolução das situações romanescas, bem encadeadas, abrangendo um plot e narrações paralelas, Machombongo se distingue pela linguagem, muitas vezes oral, em outras ocasiões recriada com aquele poder de alquimia verbal que caracteriza, por exemplo, a prosa ficcional de Adonias Filho, e em feliz conúbio com a secura de expressão de Graciliano Ramos.
Portador de uma cardiopatia, Euclides Neto faleceu prematuramente e está sepultado em Ipiaú, terra que muito honrou e que lhe deve a inclusão na geografia literária brasileira. Ainda tinha o que dizer – e muito. Estava, então, com um pé em patamar mais alto de expressão, conforme revela o conto O tempo é chegado, sobre uma ilusória caçada sonhada (ou ressonhada) por um homem enfermo e seu cão.