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O prefeito Euclides Neto

Hélio Pólvora

Artigo em “Um prefeito” - A Tarde - 1984

Como todos sabem, mestre Graciliano Ramos entrou para a literatura brasileira através de um relatório de sua autoria, quando prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas, ao govenador do estado. Estilo, criatividade e observação veraz atraíram a curiosidade do poeta-editor AugustoFrederico Schmidt. Li esse famoso relatório, pela primeira vez, em Última Hora, do Rio, na coluna de Marques Rebelo. Eu era editor do segundo caderno, o autor de A Estrela Sobe sentava-se bem perto - e assim, antes que a matéria baixasse à composição, eu podia acompanhar a prosa (àquele tempo com uns livros de Machado e de Eça) do ex-prefeito e as exclamações admirativas do seu divulgador Marques Rebelo.

Prefeito de Ipiaú, no decênio de 60, o ficcioista-cacauicultor Euclides Neto (Euclides Jose Teixeira Neto) recorreu também ao relatório, e à moção, ofício, solicitação etc., na tentativa de sensibilizar autoridades públicas em favor daquele município e suas necessidades. Do seu mais recente livro - 1964: Um Prefeito, a Revolução e os Jumentos (Livraria Fator, Salvador, 1983) - constam alguns desses pedidos de ajuda que o senhor prefeito encaminhou com discernimento e picardia, pois que, no seu entender, quem pede farinha precisa ter, pelo menos, um saco.

Escolas, aterros, ginásios agrícolas, hospitais, casas populares, projetos de reforma agrária verdadeira, merenda escolar e outros merecimentos surgiram com algum apoio oficial, depois que a prefeitura havia plantado a semente, ou então somente com os míseros recursos municipais e muito suor. Não é de admirar que em 1965 Ipiaú fosse eleito município modelo do estado da Bahia.

Os relatórios de Euclides Neto, prefeito, valem por um esboço de sociologia sertaneja. Muita acuidade, malícia e conhecimento de causa. Homem ligado à terra, interiorano, ele conhece a fundo o matuto, pelo direito e avesso, e sofre com suas carências. A linguagem é franca, direta, colorida e ás vezes coloquial, sem aqueles “poréns” e “entretantos” que às vezes desgostam Odorico Paraguaçu. Por um misterioso e eficaz processo de empatia, o prefeito entra na pele do caipira, assimila seus sentimentos e, chapéu na mão, com muito respeito mas sem tremor na voz, encurta a distância entre o poder e o povo. Se os tecnoburocratas que planejam e executam serviços destinados ao País consultassem as bases, as verdadeiras bases, antes de suas doutas formulações, provavelmente este País, que o ex-governador Francelino Pereira ainda termina em definir, estaria salvo.

Nos gabinetes, o prefeito Euclides Neto discurso, sem cometer um só salamaleque estilístico.

Mas 1964: Um Prefeito, a Revolução e os Jumentos não se resume apenas, como aliás o título já indica, a um apanhado de boas intenções administrativas. É, principalmente, consequência desses bons propósitos. E consequência algo funesta, porque se estava, então, no governo João Goulart, que anunciava “reformas de base” e confirmava, a cada dia, as suspeitas dos defensores da Tradição, Família e Propriedade brasileiras. Um dia, no seu gabinete, o prefeito levanta a vista do papel em que dirige mais uma petição aos ouvidos moucos da Administração Pública – e vê-se diante de um IPM completo. Foi um deus-nos-acuda. E o prefeito só não foi mofar na cadeia porque sua fama de homem de bem ultrapassa os limites das vãs ideologias e das tretas e artimanhas de adversários políticos montados em muita terra, dinheiro e prepotência.

O livro, que tem passagens comparáveis ao mel do cacau, bebida recomendada pelos nobres astecas, completa-se com uma peça que poderia ser ficção se o ficcionismo já não andasse tão desmoralizado pela realidade cotidiana. É a parte dedicada por Euclides Neto ao nascimento, ascensão e glória do presidenciável Salim, que se especializou “em eleições oblíquas ao inventar a arte de leiloar convencionais em eleições indiretas”. “Norraurizado” (para os que ainda não cuidaram de aprender inglês: trata-se de um neologismo de Euclides, tirado de know how) em comércio de consciências, e contando com “dólares adormecidos na pátria de origem”, o presidenciável Salem vem a ser eleito por aclamação. Nada mais natural. Esses 20 anos explicariam isso. Quod erat demonstrandun.

ilustração: Adrianne Gallinari
Hélio Pólvora
Hélio Pólvora: Romancista, contista, cronista, crítico literário e tradutor.