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O patrão

Waly de Oliveira Lima

Artigo em “O patrão” - Dimensão Jornal - 1978



Saio da leitura de O patrão, livro de Euclides Neto, escritor, advogado e fazendeiro em Ipiaú e outras paragens, orgulhoso de ser tabaréu e, sob tal condição, seu colega. E revelo uma das razões do meu orgulho, justamente a que está de plantão nesta hora.

Há uns três dias vinha eu tentando ler um romance de 120 páginas, que a crítica do sul do país prestigia com os maiores louvores. Seu autor tem trânsito livre na grande imprensa do Brasil meridional. Não lhe tem faltado elogios à “obra bem elaborada do mestre da narração...”.

Mas de quinta-feira até a manhã deste sábado não consegui passar da página trinta, indo e voltando, voltando mais do que indo, nos caminhos difíceis, direi quase impenetráveis, das tais letras “bem elaboradas”.

Um escritor tão elogiado, que revela no prefácio estar contando histórias do cotidiano paulista, e eu, empacado e refugando, sem bispar um palmo adiante das ventas!

Era este o meu monólogo, de leitor frustrado, incapaz de livrar-se das malhas literárias do gênio de Piratininga ...

Para minha alegria, o correio me trouxe O patrão, que só deixei de lado agora à noite, quando o último personagem disse a palavra final e saiu de cena, me deixando saudoso.

E eu que não entendi quase nada do que disse, ou quis dizer, o hermético conterrâneo e antípoda de Menotti, gostei e me prendi à leitura do livro de Euclides Neto.

Bom artista, segundo entendo, é o que comunica. Viva, pois, o mérito literário do provinciano de lpiaú!

Em poucas palavras, condensadas, precisas, claras, da melhor linguagem — a que transmite fatos e ideias, como o sol emite luz —, Euclides Neto descreve cenas nossas conhecidas, passadas numa fazenda de pecuária; fala do relacionamento vaqueiro-patrão; aponta injustiças clamorosas; retrata as manhas da compra-e-venda de boi em pé; põe o cautério na chaga viva da exploração de uma classe inerme por alguns desalmados, mal egressos do feudalismo... e traz à tona o problema de um dos tipos de crime do meio rural baiano, deixando ao pesquisador uma porta larga para estudo do caráter de certos criminosos dos nossos sertões.

Finaliza o autor transmitindo-nos, nas entrelinhas da sua história, evangélica lição extraída da evidente impotência do mal, da fragilidade de toda ambição desmedida e do nada que representa o insopitável desejo de enriquecimento ao arrepio das leis naturais que devem nortear a boa convivência humana. Porque tudo, afinal, se aniquila frente à realidade da morte, a implacável niveladora.

Para esse Patrão a morte chegou numa tocaia. Mas ...mesmo que ela chegue num leito de moderno hospital, contestada por todos os doutores, driblada pelas diálises, anestesiada pelos potentes analgésicos, amortecedores da agonia e da dor, suavizada pelo meio sorriso de bondosas irmãs de caridade, vencerá, inexoravelmente, a última batalha. E mostrará a todos os patrões do mundo que não valeu morrer por um gabarrento furtado...

Os trabalhadores também verão que não compensa matar, porque as consequências de um ato criminoso, em todos os planos da vida, são bem maiores do que os resultados de qualquer desmedido terremoto.

Nada sei dos sentimentos religiosos do Euclides. A medi-los pela grandeza de alma e pela inabalável fé da minha boa amiga Rute Teixeira, sua prima-irmã, ele deve ser um bravo soldado das hostes do cristianismo. Os conceitos do seu livro me levam, também, a essa conclusão.

O patrão, em verdade, eu o vejo como uma lição prática de catecismo. Uma maneira nada ortodoxa, mas muito válida, de dizer, “amai-vos uns aos outros”, tais as funestas e evidentes consequências, tão bem apontadas, do desamor, do desprezo dos grandes às angústias dos pequenos, as subestima, da filosofia do endinheiramento a qualquer preço, como se não existissem outros caminhos para a realização plena do ser humano.

O livro de Euclides Neto, que ele chama de conto, novela, romance, ou tolo depoimento de acontecidos, ao pretender mostrar um pedaço do chão rural de Ipiaú, onde se deram os “acontecidos”, aponta-nos, talvez, sem qualquer intenção evangelizante, luminosas clareiras da definitiva fazenda do céu...

ilustração: Adrianne Gallinari
Waly de Oliveira Lima
Waly de Oliveira Lima: (1919-1999) Foi Promotor de Justiça durante anos na cidade de Itabuna no Sul do Estado da Bahia. Textos e crônicas de sua autoria aparecem na imprensa regional e, no jornal “Dimensão” e “A Tarde”.