O mundo mágico de Euclides Neto
Fred Navarro
Apresentação em “Dicionareco” - segunda edição - 2002
É de Euclides Neto esta máxima: “O dicionário é a palavra – a alma do povo”. O mestre Guimarães Rosa, por sua vez, no livro Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro, de Günter Lorenz, disse o seguinte: “Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Talvez um pouco antes. E este fará as vezes de minha autobiografia”.
A nova edição deste Dicionareco é uma grata surpresa para todos aqueles que admiram ou trabalham com a língua portuguesa. Marcado pela autenticidade, este livro registra o linguajar de uma região específica do estado da Bahia, repleta de cidades cujos nomes já dão o que pensar, principalmente pela riqueza de referências portuguesas ou indígenas: Alcobaça, Belmonte, Caravelas, Coaraci, Ibirapitanga, Ilhéus, Ipiaú, Itabuna, Itajuípe, Jequié, Jussari, Porto Seguro, Santa Cruz da Vitória, Santa Cruz de Cabrália, Taperoá, Uruçuca e Valença, entre outras. Nomes de lugares, proustianos, trazendo de volta à mente toda uma geografia, culinária, vestuário e vocabulário, a verdadeira cultura viva de uma região.
Euclides Neto sabe do que fala. Ele escreveu: “Sou um mateiro que, nasceram os dentes, perdeu-os, ganhou-os de novo e tornou a perdê-los nas roças de cacau”. As palavras e expressões contidas neste livro representam muito mais do que um trabalho de pesquisa ou mesmo de exercício de memória. Elas são um registro vivo da língua falada na região do cacau, uma espécie de fotografia que resgata o espírito de um momento. Basta percorrer o livro, aleatoriamente, abrindo uma página ao acaso e, nela, escolhendo uma ou duas expressões quaisquer, para comprovar isto.
Como jornalista e autor de um dicionário regional abrangendo toda a região nordeste, consigo visualizar as armadilhas de que Euclides Neto teve de escapar para construir este livro. A autenticidade a que me referi no primeiro parágrafo só é ressaltada aos olhos do leitor atento, quando o trabalho final espelha fielmente o rigor crítico com que a obra foi edificada. Neste Dicionareco, tudo bate, tudo faz sentido, tudo força a imaginação e os sentidos a reviver a cada página os terreiros, os cheiros, a cor do chão e das estradas, o céu estrelado das noites sem lua, as comidas e bebidas típicas, os humanos, os animais domésticos ou selvagens, a presença poderosa da natureza, dominando tudo. Como se diz nas cidades, o livro capta todo o clima da região. Difícil essa arte de ser fiel sem um certo afrouxamento dos critérios na construção de um livro como este. Tendemos a ser generosos, benevolentes, incluindo palavras e expressões que muitas vezes achamos ter tido origem na região, o que só pode ser evitado através da pesquisa rigorosa e do cruzamento das informações com outras fontes, trabalho árduo e silencioso que os bons pesquisadores fazem sem reclamar.
Há na linguagem praticada na região nordeste algumas particularidades que fogem ao conhecimento do grande público. A professora Nelly Carvalho, do departamento de letras da Universidade Federal de Pernambuco, chama atenção para um detalhe: as primeiras levas de imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil (entre 1500 e 1600) ainda guardavam forte influência da cultura moura, que, em boa parte, controlou a península Ibérica entre os anos 700 e 1350. E essas primeiras levas vieram para os atuais estados da Bahia e de Pernambuco. E, na medida em que as palavras e expressões saíam do litoral e caminhavam em direção ao sertão, ficavam como que protegidas, guardadas, quase imunes às novas palavras que chegavam depois. Os portugueses que chegaram nos outros polos da colonização brasileira (São Paulo, Rio de Janeiro e Belém), um século depois, já não tinham a influência moura tão aguçada. Isso explica por que no cotidiano do nordeste ainda são faladas tantas palavras de origem árabe, registradas por Elomar, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e tantos outros artistas da região.
Temos muitos falares, muita diversidade, muitos dialetos convivendo dentro da enormidade geográfica que é o Brasil. Um gaúcho da fronteira com o Uruguai terá alguma dificuldade de entabular conversação com um vaqueiro nordestino ou com um seringueiro do Acre, pelo menos durante um certo tempo. Pensem num surfista carioca tentando se fazer entender por um mateiro do sertão baiano ou paraibano. Vai levar alguns minutos para eles entenderem que falam a mesma língua. Aqui reside a importância do livro de Euclides Neto: ele quebra barreiras, aumenta o nosso conhecimento e democratiza o acesso às tantas linguagens escondidas dentro do português abrasileirado que falamos e escrevemos por aqui. Na sua Bahia, no seu território, Euclides Neto pôde garimpar, recolher e escolher algumas pedras preciosas dentre a infinita quantidade de exemplos trazidos pela correnteza da linguagem cotidiana. É um mundo mágico, com vida própria, onde o homem, a terra e o cacau predominam.
Não percamos mais tempo. Vamos saborear este livro, como se fosse uma autêntica refeição do sertão nordestino, daquelas que Euclides Neto adorava. Bom proveito para todos.