Histórias do povo da roça: fontes populares no conto de Euclides Neto
Cid Seixas
Posfácio em “O tempo” - segunda edição - 2013
A narrativa de Euclides Neto é tributária direta das fontes populares rurais, notadamente da região sul da Bahia, marcada pela opulência e pela miséria das roças de cacau. Este singular escritor baiano nasceu nos heroicos anos de bravatas e bravuras desbravadoras do modernismo brasileiro e morreu em abril do último ano do século passado, sem viver o despertar do novo milênio. Escritor ilustrado nos bancos e páginas da academia, com pleno domínio do registro padrão da língua culta, Euclides Neto optou com astúcia por um projeto de incorporação das formas, substâncias, conteúdos e expressões populares ao insípido clube da alta literatura.
Recusando-se a utilizar as fontes populares como signos do exótico e do pitoresco, mas se valendo de tal riqueza como ampliação dos estritos corredores da fabulação erudita, esse atento narrador conseguiu atingir o domínio pleno da arte da escrita inventiva no seu derradeiro livro, O tempo é chegado, publicado postumamente, em 2001, pela Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, com o selo da Editus.
Os 29 textos do livro, organizado para publicação quando o autor já estava fragilizado pela doença que o levaria à morte, apresenta atributos diversificados, desde contos exemplarmente bem construídos, que figuram entre os melhores da Literatura Brasileira do século XX, a narrativas que resvalam para o pitoresco e o divertido. Além dos contos, uma crônica foi anexada às 28 histórias, “Socorro, Senhores Médicos”, que desde o título evoca as incertezas do homem em busca da cura. Trata-se, portanto, de um texto de valor notadamente documental e biográfico que ameaça romper o equilíbrio dessa obra madura e resultante da melhor performance de um escritor em constante processo de aprimoramento.
“A rica fazendeira de cacau”, “Briga de galo” e outros contos que teimam em falar alto na memória do leitor juntam-se ao exemplar “A última caçada”, narrativa curta do mais alto quilate, que merece figurar em qualquer antologia essencial do conto brasileiro moderno.
A escrita engenhosa de Euclides Neto confere à narrativa o trânsito entre dois espaços, primitivamente unidos e depois dissociados pelo discurso acadêmico: os espaços da Literatura e da História. Neste lugar de reunião ancestral, onde a arte de narrar mira mais os ouvidos do que os olhos, a experiência cotidiana e o saber comunicável transitam e se realimentam nos interstícios dos sujeitos do discurso, onde quem ensina aprende e o aprendizado é uma ensinança.
Os narradores perdidos no âmago do tempo-espaço, ou guardados e defendidos, preservados, portanto, nas dobras e nos lugares ocultados de cada cultura, destilam o sabor e o saber da narrativa primordial. Euclides — Neto e avô de saberes narrados, não obstante as leituras modernas e contemporâneas que o tornaram um profissional cultivado nos moldes da academia — retornou à fonte primitiva, entocada no interior da terra e do homem, para beber o elixir da linguagem esquecida.
Nessa fonte da eterna juventude dos povos, o narrador apenas conta e transmite experiências, saberes ou mesmo dissabores.
O narrador moderno e contemporâneo profana a história contada, junta o mito à imagem de novos deuses da razão, isto é, casa o conto, ou o astuciado, com a sua intelecção. Já o narrador primordial, apenas, narra — porque tudo é novo, misterioso e inexplicável.
A narrativa literária que a modernidade nos legou é marcada pela sanção da lógica que a tudo explica. O escritor dos nossos dias conta uma história que já contém em si mesma uma compreensão dos fatos narrados. Ou, muitas vezes, a explicação dos episódios, que nos é sugerida, constitui o desdobramento ou o desenlace da narração. A explicação e a compreensão confundem-se e transmutam-se na própria narrativa. Portanto, nada mais distante do mito do que esse tipo de narrativa engendrado pela razão crítica. Daí o fato da tradição moderna destacar, desde o século XIX, um tipo de narrativa como pertencente ao gênero fantástico. Opondo-se à ideia de realismo literário, surgiu a noção de realismo fantástico, porque o fato narrado que não contém sua própria explicação ultrapassa os umbrais da realidade narrativa.
Euclides Neto faz o narrador das suas histórias recuar ao tempo do mito, onde o que se conta não precisa de outra legitimação além do próprio contar. Onde História e Literatura, hoje dois saberes distintos, eram uma só narrativa. Os velhos cronistas foram os pais dos novos historiógrafos, gerando tais filhos quando esposaram uma virgem então inacessível: a compreensão do fato narrado.
No vórtice da viagem, unindo tempos antagônicos, Euclides Neto constrói o poder de sedução da sua escrita, chegando ao vencido vértice — ao magma, à lava, ao cristal das histórias reunidas no livro O tempo é chegado.
A multitemporalidade, que pode se converter em atemporalidade, faz as narrativas de Euclides Neto resvalarem para o estranhamento, para um espaço insólito ou uma terra de ninguém, evocando em alguns contos do autor a reminiscência de algo que está desaparecendo. Walter Benjamin, no livro Magia e técnica, arte e política, ao estudar os traços do narrador na obra de Nikolai Leskov, observa que as características orais da arte de narrar estão em processo de extinção, porque a sabedoria — “o lado épico da verdade” —não encontra espaço numa sociedade marcada pelo desaparecimento das relações interpessoais construídas no trabalho. Especialmente nas atividades e ofícios em que a troca de experiências constituía a produtividade. Para o filósofo,
esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular de forças produtivas. (Benjamin, 1987, p. 201)
Podem-se evocar algumas ideias desse pensador da escola de Frankfurt, a propósito da ficção de Euclides Neto e da sua busca de caminhos na esfera do romance, para achá-los, depois, na prática do conto, quando realiza a maturidade da sua arte de narrar. Benjamin observa que a tradição oral, que é característica da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente diversa de tudo aquilo que viria a definir o romance como forma literária. As formas narrativas que aspiram romper com a tradição da cultura ágrafa se afastam da tradição oral, dos contos de fada e das lendas, buscando novos saberes na transmissão escrita da ciência. Por outro lado, há formas narrativas menos preocupadas com a compreensão do admirável mundo novo e mais comprometidas com a transmissão da velha e renovada experiência adquirida no dia a dia das pessoas. Aqui se fala, particularmente, do conto de Euclides Neto. O narrador primordial retira da própria experiência ou da experiência relatada por outras pessoas as coisas que são incorporadas à sua história.
No panorama do conto brasileiro do século XX, Euclides Neto configura os traços do narrador benjaminiano; como alguém que vem de longe e conta aos seus ouvintes a experiência e a sabedoria trazidas de lugares mágicos, porque defendidos pelas brumas do desconhecido. Essa distância configurada no saber no narrador é, segundo Benjamin (p. 202), o longe espacial das terras estranhas e o longe temporal contido na tradição.
Para o filósofo neo-hegeliano, somos pobres em histórias surpreendentes mesmo quando somos torpedeados por notícias de todos os cantos do mundo, porque os fatos que constituem as notícias já chegam acompanhados de explicações. Benjamin entende que a maior parte do que é veiculado está a serviço da informação, em detrimento da narração; e afirma textualmente: “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (p. 203)
É esta ausência de intervenção da lógica e do pensamento explicativo que assegura a permanência, na memória do leitor, tanto das antigas narrativas históricas, construídas pelos cronistas e escrivães reais, quanto do conto, de ontem ou de hoje, fundado em tais bases estruturais.
Para elucidar o raciocínio aqui desenvolvido a propósito dos contos de Euclides Neto e do seu lugar no quadro da literatura brasileira do século XX, ouçamos o que diz o pensador da escola de Frankfurt:
“Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável.” (Benjamin, 1987: 209)
Herdeiro dessa forma narrativa, pela via da tradição oral que também a alimentou, Euclides Neto substitui a explicação plausível pela lógica da fábula, identificando a estrutura do seu texto com a do texto do mito. A narrativa mítica não precisa explicar aquilo que narra, pois ela mesma já é uma explicação para o que ainda não se explica.
Se o mito é uma narrativa primordial destinada a buscar compreender o que ainda está velado, ou uma espécie de discurso aleatório para vislumbrar o que ainda não se explica, ele antecipa a fala do sujeito que tenta, no divã, tagarelar à toa sobre o que não sabe. Assim é a narrativa dos casos da roça, em O tempo é chegado, que vela e revela o que somente se entrevê.
Autor de ensaios, crônicas e romances, Euclides Neto iniciou-se nas artesanias da escrita com a geração emblemática de 45, marcada pela fusão do veio telúrico dos anos 30 com os tumultos de um mundo novo que se refazia. Ao longo de doze livros publicados em vida, o escritor desenha a cartografia de um percurso e as perdas e ganhos de um percalço, para deixar como herança da sua obra de escritor multiface, polígrafo, um livro póstumo que é uma espiral parabólica no panorama da nossa literatura.
Utilizo a expressão espiral parabólica no sentido de lugar geométrico: plano de um ponto que se move com velocidade constante ao longo de uma reta; girando, por sua vez, com movimento uniformemente acelerado em torno de um ponto fixo.
Simples e complexa, ingênua e maliciosa, divertida e cismada, dissoluta e contrita, ilusória e densa são adjetivos que escorrem, numa cascata cambiante de oxímoros, a dialogar entre si no faz de conta da prosa maneira do mais original contista das roças de cacau.
Ora aceitando os desafios da escrita literária do seu tempo, ora recuperando o pensamento silvestre que escorre num dedo de prosa matuta, o texto narrativo de Euclides Neto contempla a re-apropriação do pensamento selvagem, no sentido proposto por Lévi-Strauss. O contista de O tempo é chegado transita com desembaraço entre espaços marcados pela incompatibilidade, promovendo a alquimia da criação artística que transmuta a dureza dos metais na ductilidade do difuso.
Os contos reunidos neste livro de guardados, achados e perdidos, chegam sorrateiros, como o matuto que pede licença para entrar nas casas da cidade, com gestos silenciosos e humildes. Mas sua entrada, não obstante a suavidade matreira, é acompanhada por uma luminosa inquietação. O gosto e o saber estabelecidos são delicadamente postos em suspenso no curso de um astuciado que nos leva de volta a lugares descolonizados pelo pensamento selvagem.
A ingênua simplicidade dos contos de fadas estão a serviço de uma dicção culta, ampliada pela experiência do homem que vivencia uma outra cultura, subterrânea e subjacente como um lençol freático a dessedentar os exaustos caminhantes de uma seara massificada e exaurida por um vendaval de informações.