Euclides Neto: documento e vida
Jorge de Souza Araújo
Apresentação em “Vida morta” - segunda edição - 2012
Euclides José Teixeira Neto(1925-2000) é natural de Ubaíra, mas cedo migrou, fixou residência e por isso é também considerado nativo de Ipiaú, cidade onde fez política e foi advogado e prefeito eleito no início dos anos 60. Sua linguagem narrativa tem os ecos da oralidade, da fala sem cabresto do povo simples do interior, aliados a arcaísmos próprios do leitor de clássicos portugueses, recuperando a eugenia vocabular do discurso estilístico, que funde a expressão tropeira e primitiva ao virtuosismo da linguagem castiça. O estilista e o virtuose se asseguram da verdade estética imprimida à obra de arte literária, no limite da apuração da forma despojada de arabescos ornamentais, transformando o simples e convencional da matéria bruta em lavor de técnica apurada. A observação direta do real é mimetizada em genes de romances decididamente fiéis à cultura popular.
À semelhança (e talvez equivalência, guardados os projetos, tempo, espaço social, identidade e autonomia) de um Gregório de Matos traduzido emocional e sociologicamente, pode dizer-se de Euclides Neto que sua obra é reflexo de sua identidade pessoal. Euclides escrevia conforme pensava, ou, em outros termos, encarava a literatura como espelho da realidade de sua experiência de vida.
Vida morta é o segundo romance de Euclides Neto (Salvador: Depósito Continental de Livros, 1947), que estreara com Birimbau no ano anterior. A capa e a folha de rosto de Vida morta inscrevem epígrafes de Oscar Wilde (Não há livros morais nem imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Nada mais
) e São Clemente (Não deveríamos ter vergonha de falar do que não teve Deus vergonha de criar
). As epígrafes como que previnem, servindo como anteparo prévio a discriminações quanto ao descritivismo detalhista de algumas cenas mais tórridas nos encontros do protagonista com as irmãs Heloísa e Rosa, filhas de sua senhoria e madrinha, dona Francisca. Servem ainda como advertência ao leitor sobre o material temático objeto de tratamento no romance, que o autor, surpreendentemente gaiato, afirma dedicar aos que não gostarem deste livro. A boutade ou non-chalance são características de um escritor que fez, não raro, da autoironia uma projeção de sua personalidade simples e espontânea, como procuram ser suas obras.
As contradições alimentadas e espicaçadas no curso do segundo romance de Euclides Neto (1947) começam com a ambiguidade do título, que aponta um discreto pendor para o neonaturalismo. Vida morta tem ambiência de horizontes rotos, mais desesperança e amargura, envolvendo estudantes pobres, prostitutas, a maioria constituída do que chamaríamos sartreanamente de a juventude envelhecendo, encolhida em sua tibieza e falta de arrojo existencialista. Os períodos curtos aceleram a marcha batida do relato, pontuado sempre com alguma crueza memorial: O tempo correu lento e pesado. A miséria parecia torná-lo oleoso e lamacento. A nossa vida confundia-se com o rio
(p. 19). Alguns equívocos de construção textual (iam dá, ao invés de iam dar; A pouco, ao invés de Há pouco; A maioria dos estudantes o desprezavam, ao invés de o desprezava; preistóricos, em vez de pré-históricos etc.) não comprometem demasiado o ritmo narrativo ou estrutural do romance, que transpira uma saudável e louçã indignação existencialista, abrindo lugar para a ironia e o sarcasmo antiepopeicos, como as considerações sobre milícias (Os exércitos são as maiores fábricas de preguiça
, p. 23) e Herói da guerra: uma banana
(p. 23), alusões consideradas subversivas, assim como todo o romance, etiquetado como leitura perniciosa.
Vida morta assume claramente um discurso de retórica antibelicista entre os estudantes de Direito na antiga Faculdade Baiana em Salvador. A narrativa alterna o relato na terceira pessoa e monólogos. O protagonista (Antônio) é um jovem idealista questionando-se ideologicamente. Vinculado ao PBB, mas dilemático entre os compromissos partidários, carrega consigo as aspirações da pequena burguesia e o esforço pela sobrevivência pessoal. É uma longa jornada do herói impaciente e problemático, vivendo numa pensão, e uma paixão proibida com a filha da sua senhoria, retratando paralelamente o microcosmo das pensões populares numa Salvador ainda acanhada e num complexo universo pré-metropolitano com seus estudantes desviados para a rota da boemia extravagante e juventude perdulária. Pode dizer-se, a propósito deste segundo romance, que Euclides Neto é um escritor ainda em busca de um estilo, acentuado por frequentes impropriedades com o uso do infinitivo (parecia está) e/ou do artigo masculino/feminino ou advérbio confundido com o adjetivo (Uma telefonema; mal vontade). O arremedo neonaturalista é flagrante na linguagem fonetizada, na descoberta do sexo, no amor do protagonista alternando materialidades entre duas irmãs. O lúdico dos impulsos sexuais indica curiosidade adolescente, arriscando tomar o pulso integral e maior interesse da narrativa. Livro inspirador? Claro, A carne, de Júlio Ribeiro. Apesar do relato fluente e sincronizado, Vida morta não buleversa, não envolve o leitor, faltando-lhe ainda a sutileza e densidade que Euclides Neto adiante demonstraria, com sobras, nos romances posteriores.
O herói, estudante de Direito na Salvador dos anos 40, escapa ao fácil cortejo autobiográfico, questionando tudo, de tudo insatisfeito, desde os rumos de sua vida acidentada pela pobreza, órfão de pai, mãe corrompida pela miséria, irmãs prostituídas, reconhecendo-se como se capitulasse diante da vida. Quando monologa, o narrador-personagem parece mix do João Valério, de Caetés, lembrando do outro a ambição de escrever livro vitorioso e vingador... O protagonista pulsa de energia glandular, da libido afirmadora da personalidade masculina, sem canais de desaguamento das pressões. Também lembraria (ou anteciparia, porque publicado dez anos antes) O ventre, de Carlos Heitor Cony, com os novelos sucessivos e encadeados das obsessões sexuais e das angústias da náusea existencialista. Os arrojos e arroubo das cenas picantes (Antônio e Rosa) contracenam com o arrebatamento delicioso do namoro (Antônio e Alice) no cinema, arrebatamento frustrado com a intermitência da conversa da moça, interrompendo maiores ousadias.
O protagonista Antônio é herói suicidário, avesso à luta, progressivamente entregue e amorfo, reprovado nos exames, rebelde sem causa, numa movimentação romanesca típica de um romance de geração perdida. Entre os estudantes e o CPOR, todavia, essa geração perdida ainda demonstra uma consciência crítica do estado exangue da sociedade brasileira, a narrativa fazendo escoarem sentimentos antibelicistas e até antimilitaristas, exibindo, de contrapeso, a miséria contingente do cotidiano sem horizontes numa Salvador marcadamente provinciana. O narrador investe tanto na impiedosa crítica aos exércitos, que chega ao ponto de manifestar desejos de absoluta exclusão das Forças Armadas. Um moço velho, considerando-se definitivamente batido, carpindo a amargura dos exilados
(p. 154), Antônio é um Casmurro moderno, sem Capitus nem Escobares, legítimo gauche de olhos encovados, militando em desertos inconscientes e íntimos apuros da perplexidade existencialista, prenunciando que meus dias serão pequenos, vazios, simples... Em nada pensarei. Sonharei com um mundo na mão... Vendo-o em desordem
(p. 155).
O talento no discurso indireto, na condução neorrealista da narrativa direta, incisiva, sem subterfúgios ou adereços ornamentais da linguagem, só não camufla ou supera a dimensão crítica que resulta da observação direta do real, a que o narrador responde com um realismo social tingido de forma solidária e cúmplice.
O naturalismo fonético nem sempre cumpre com eficiência a fluidez semiótica, desconstruindo assim a naturalidade textual e força imagética, embora tudo na narrativa de Euclides Neto pareça sincero. A despeito das impropriedades, Vida morta convence pela solidariedade humanista que trescala do narrador (confundido com a pessoa moral do autor) às suas personagens, a exemplo do que Jorge Amado faria em Cacau, Suor, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e outros romances, testemunhando um passado sofrido e um futuro sem cor dos oprimidos. A dificuldade na definição do infinitivo (ver) e o indicativo presente (vê) é o que mais torna evidente o caráter ainda impreciso da prosódia narrativa de Euclides Neto, cujo fluxo memorial é intenso e tenso na protagonização dos conflitos interiores vividos por Antônio, herói cujo sofrimento macera e enrijece o ânimo, retemperando-o para um presente de egoísmo misantropo e niilista, à base do Só eu existo. O próximo que morra, que seja desgraçado
(p. 19).
A crítica ao militarismo (em um livro do pós-Segunda Guerra, em 1947) serviria como pretexto adicional ao processo e IPM a que Euclides respondeu (e do qual foi inocentado e absolvido por absoluta falta de provas) de abril de 1964 a dezembro de 1965. Nem tanto ao militarismo, mais ao alistamento obrigatório, a retórica de ataque antibelicista encarna no protagonista de Vida morta o proselitismo autoral do pacifista e a indignação do humanista, conquanto também se trate de discurso o seu tanto desfocado do objeto nuclear do romance, restando, mais, como peça folhetinesca de engajamento nada sutil, subversão relativizada pelo modelo histórico de crítica a todas as guerras, da redemocratização brasileira pós-Estado Novo, pela Constituinte de 1946. Afinal, convence-se o protagonista, o maior construtor de proletários é a guerra
, responsável pelo número de miseráveis afogados na indigência
, uma vez que a guerra é a mãe da miséria
(p. 24).
Mas o próprio protagonista vive entre a inércia e o arrebatamento, a indignação e a indiferença, hesitante reativo ou cínico a depender das conveniências de sua deserção. O impressionismo autoral confunde o narrador, jungindo-o ao parti pris. A sexualidade explode como consequência natural de ímpetos às humilhações do cotidiano, movendo-se entre ardis e sutilezas, corroendo preconceitos e fazendo vibrarem corpos jovens, compelidos por desejos asfixiados pelas convenções. Antônio vive a insatisfação, o tédio existencial e a angústia metafísica de toda uma geração margeada pelo imobilismo, a revolta e a deserção, os sonhos e ideais adiados ou frustros, a inanição ideológica, as encruzilhadas partidárias, o protagonista chegando ao cúmulo da mais completa desilusão ególatra: Que eu tenho com a sociedade dos pobres? Fui sempre miserável. Quero cuidar de mim mesmo. Não estou pronto para sofrer, nem quebrar a cabeça. O proletariado que continue a se arrastar
[...]. O mundo vive porque eu o sinto. Nada merece um esforço meu
” (pp. 45-6).
É um típico Euclides Neto anticonformista dispondo num herói de geração perdida seus mais agônicos desencantos, espécie de Euclides entre Camus, Sartre e Mauriac, exercitando no misantropo Antônio a personificação glandular do herói decaído, o desesperado em livre curso de abismos, ódio visceral a instituições e pessoas caducas, narrador concentrado cujo flerte com Kafka se manifesta pela via do horror à burocracia, à servidão, à riqueza ostentatória e ao pistolão. Fabulista de enredos, Euclides Neto domina como poucos o diálogo e as situações de sensualismo inquieto e intermitente. No início do capítulo 20, amparado na metáfora vegetal, um dos poucos momentos de real brilho no romance se robustece pelo equilíbrio entre tensão e lirismo. Nos outros instantes da desenvoltura narrativa predominam os presságios de uma exasperação metafísica que vislumbra um crônico mal-estar existencialmente vinculado a noções de queda ética, arruinamento moral, depressão e renúncia, expressões emocionais só refreadas pela lógica meridiana do pensamento recorrente, similar ao do herói camusiano d’A queda, conforme se acentua no herói desistido ao final do capítulo 24: A única coisa existente de vivo em mim é o sexo
[...] Mas a amargura que me deprime tanto? ...Esta preguiça de viver, de onde vem?
” (p. 116).
Alguns vagos impressionismos (a exemplo de “Barreto”, última seção do capítulo 29) parecem completamente fora do planejamento narrativo original de Vida morta, assemelhando-se mais a uma espécie de caco teatral, de interesse desproporcional ao desenho de amarguras que o romance tece desde o começo. É mais uma prova eficacíssima do lento aprendizado do estilo que se revelaria tão inovador mais adiante, nas obras que incorporariam definitivamente Euclides Neto como dos mais instigantes escritores da modernidade narrativa e humanística no Brasil.
O romancista que começa com um ensaio pitencantrópico de Porque o homem não veio do macaco, em 1942, deriva para o ficcionalismo de agudezas humanas, rurais ou urbanas, começando com o regionalismo deBirimbau (1946), descambando para o metafisismo estrangulado de Vida morta (1947) e retornando a temas e problemas do universo transfigurativo provocado pelo sul da Bahia nos romances Os magros (1961), O patrão (1978), Comercinho do Poço Fundo (1978), Os genros (1981), Machombongo (1986), A enxada (1991) e outros. Em 64: um prefeito, a revolução e os jumentos, põe em relevo o senso de medida radical do prefeito eleito (para o quadriênio 1963-7) e afastado pelo Exército brasileiro em 1964. Sem abrir mão do estilo irônico que o consagraria, o narrador afirma, numa representação de algumas dessas medidas radicais do administrador-narrador, por exemplo: ao aposentar uma Caterpillar que, em tempo de crise braba (seca, desemprego, malquerenças do tempo), significava tirar farinha da cárie de trezentas pessoas
(p. 24), o prefeito-narrador faz chover protesto contra o alcaide retrógrado, acusado de comunista, e a isso contrapõe a alegria da festa do labor de homens e mulheres ganhando farinha e dignidade, e mais os galos alvissareiros
[que] estilhaçavam em cacos o silêncio da mata
(p. 26). Contrariando os malquerentes, adversários de sua noção de democracia, o prefeito escolhia telhas de barro para cobrir as casas humildes, ao invés da modernosa telha de amianto, novidade no rabo da propaganda
(p. 29). O resultado de semelhantes ações é o difícil, pesado, pungente cotidiano de um político sensível e ideologizado ante as misérias dos excluídos, tudo rigorosamente retratado no misto de romance-verdade e memorial, em tudo semelhante à ficcionalização do real concreto ainda hoje em traumático vigor.