Escrita telúrica
Clementino Heitor de Carvalho
Artigo em “O menino” - A Tarde - 1995
O menino traquino, de Euclides Neto, é uma coletânea, segundo o próprio autor, de crônicas políticas e crônicas leves. As leves são melhores, dando campo ao seu lado telúrico: mais soltas, revelam a sabedoria de um homem em profunda comunhão com a natureza. Representam a face amena do escritor de texto enxuto e às vezes quase lírico, sem as crispações de zanga provocadas pela sua inquieta insatisfação com as injustiças sociais e características de sua escrita política.
Os temas campestres sempre inspiraram a criação literária em prosa e verso e já atingiram culminâncias de apuro. Por exemplo, nas Geórgicas, de Virgilio. Manifestam a constante humana do apego à terra, tão bem expresso no mito de Anteu. Aqui está a vertente natural e mais rica do escritor Euclides Neto.
A capacidade de indignar-se ante as exclusões que fabricam os deserdados compõe outra vertente e marca o homem público desdobrado em jornalista. Poderá ser aprimorada com o humor, mais eficiente como arma de combate contra os erros da sociedade do que a ira nua e crua. E sobretudo mais agradável como estilo, para o leitor.
Comentando o Manual do contista aprendiz, de Márcio Moreira Alves, o crítico Eric Nepomuceno lembrou: “Como reconheceu Jorge Amado ao falar de sua própria obra, aos jovens costuma faltar o humor que só vem com a maturidade”. Em Euclides Neto, o trânsito, ainda possível, para esta forma mais sutil e universal de botar para fora a indignação, pode ser dificultado pela sua juventude persistente, fora dos parâmetros cronológicos, e pelo grau de inconformidade com as injustiças que não retrocedem, resistem, provocando certa ansiedade e quase desesperança. Para superar esse obstáculo, o autor conta com suficientes recursos literários, postos à sua disposição pelo seu temperamento de escritor. Se quiser facilitar-se essa mudança, basta cavalgar, de rédea solta, a sua generosidade congênita de ser humano capaz de tecer cânticos de amor à prosaica jaqueira (“A jaqueira”, p. 104, e “A jaca”, p. 106).
Na orelha do livro, Waly de Oliveira Lima faz uma observação justa, como aliás é seu feitio de intelectual: “O Euclides Neto é um ser privilegiado. Consegue, ao mesmo tempo, ser rural e urbano”. Isso não acontece por acaso, acrescento eu. E arrisco mais uma citação, agora do mestre Gilberto Freyre, a propósito de Ramalho Ortigão: “Em Ramalho, essa formação (telúrica) foi uma energia sempre virgem a defendê-lo dos perigos da dissolução cosmopolita e dos exageros de entusiasmo pela ‘hipercivilização’ europeia”. O telurismo realmente transmite a Euclides Neto essa força instintiva com que se defende das ameaças ao seu viver bucólico de criador de cabras. E todo o seu ofício de escrever está impregnado dessa resistência espontânea à desfiguração do homem rural a quem a condição de advogado, político e administrador público impôs obrigações urbanas.
Daí o seu equilíbrio, o equilíbrio não perturbado pelas refregas de militante contra a miséria e que lhe permite as traquinadas de menino mais velho com o neto, menino mais novo (“Vamos brincar, vô?”, p. 97). O azedume de suas crônicas políticas provém da impaciência por soluções que nunca chegam, para melhorar a vida dos oprimidos. E não compromete o fundo generoso de uma personalidade simples e, por isso, fecunda de afeto pelos humanos e pelos vegetais.
O seu instinto ecológico se derrama em “A eco nas fazendas”, com esse fecho que nos remete ao poeta-naturalista Henry David Thoreau: “Quem não possuir terra, ponha comida aos pássaros na janela do seu apartamento, casa ou rancho e ganha uma FM de graça” (p. 96). O amor à terra, vinculado à consciência social, talvez explique a insistência pela reforma agrária. Por saber o valor existencial e prático de um pedaço de chão não suporta o privilégio dos proprietários em face dos sem-terra. O assunto tem sido muito politizado, servindo de tema às vezes para gente mais do asfalto. Para eles, “a curto prazo seria um dos meios de estancar essa sangria de violência, ou, pelo menos, diminuir o êxodo rural” (“O arrastão e a reforma agrária”, p. 38). Uma visão mais realista do que a daqueles que, a exemplo de certos defensores da privatização, veem na reforma agrária o remédio para todos os males.
“Leis dos 4 fios” é crônica que aborda uma das causas do empobrecimento em certas áreas do sertão. Sou testemunha disso em Pedro Alexandre (BA), onde a tal “Lei dos 4 fios” foi implantada com o nome de “japão”, acabando aquele tempo em que “sempre havia um bodete para abater, tirar uma banda para o fogão da casa, vender a outra, e ainda negociar o couro”, e a cabra para tirar o leite. Afinal, prevaleceu o grito do importante: “Quem entender de criar bode que o faça preso ou na corda. Aqui é meu!”.
As ideias de Euclides Neto sobre as questões agrárias e o país como um todo podem suscitar divergências mas ninguém pode discordar do final de “Resta-nos sonhar” (p. 53): “Resta-nos sonhar com um Brasil comendo, morando, estudando, divertindo, exportando a sobra da sua mesa, com tempo livre para a ternura, sem pensar em enriquecer vendendo armas, destruindo símbolo do capitalismo selvagem”. Mas o leitor está com O menino traquino (também título de crônica inspirada no ex-presidente Fernando Collor) à disposição nas livrarias. E assim travar contato com este escritor consciencioso, de estilo direto, texto de poucos adjetivos e frases curtas. Se tiver neto, um conselho: comece a leitura por “Vamos brincar, vô?”