Doutor Euclides Neto
Lourival Gusmão
Apresentação em “Trilhas” - terceira edição - 2013
A gestão do doutor Waldir Pires, no comando do governo do Estado da Bahia na década de 80, destacou-se pelo diferencial na época em gestão pública quando criou a Secretaria de Reforma Agrária e Cooperativismo e nomeou para a pasta o grande poeta, escritor, camponês, desbravador e sertanejo acima de tudo, doutor Euclides Neto.
Doutor Euclides Neto, advogado de formação, portanto conhecedor das leis, carregava na sua bagagem o peso da repressão de 1964 por ter experimentado, quando prefeito de Ipiaú, fazer a reforma agrária, atendendo as necessidades dos trabalhadores rurais sem terras e de- sempregados daquele município, levando avante o projeto denominado “Fazenda do Povo”. Esta iniciativa, bem-sucedida até os dias atuais, fundamentou todo seu trabalho posterior, como também foi um dos motivos de investigação policial durante a ditadura.
Quando se lê Trilhas da reforma agrária observa-se o acúmulo de conhecimentos, de experiências de lutas populares, de convivência com representações das classes sociais. Sempre com o compromisso claro, transparente com os trabalhadores. Doutor Euclides Neto usava esta vivência adquirida sabiamente como grande ferramenta de diálogo e negociação entre fazendeiros e posseiros, sem medo. Buscava sempre a vitória dos que nada tinham ou tinham pouco: os sem-terra.
A Secretaria de Reforma Agrária foi um avanço extraordinário para os movimentos sociais, mesmo com muitos fazendo oposição ao governo Waldir Pires. Construíram-se diálogos, evitaram-se confl itos, ou seja, semeou-se um novo ambiente de relação entre Estado e sociedade na luta pelos seus direitos. A reforma agrária estava na pauta do governo Waldir Pires e fazia parte do dna de doutor Euclides Neto.
O autor passou gigantescas difi culdades com as estruturas do Estado, ainda as mesmas, para executar um programa que viesse benefi ciar os mais pobres, sem contar toda a batalha ideológica contrária, alimentada pela mídia e pelas organizações dos latifúndios e das forças atrasadas em todo o país. Somam-se a tudo isso o conservadorismo da legislação federal e a extraordinária burocracia do incra, ainda existente, para inibir o processo de reforma agrária no Brasil.
A Trilha é produto também de muita coragem, que ele tinha e que passava para quem estava com ele. Relembro um fato, entre tantos que vivemos e passamos nessas trilhas, em Santa Rita de Cássia, no oeste baiano: eu, como técnico da car e seu assessor de secretaria, e Arruti, Superintendente do incra para a Bahia. Voamos de Salvador com a intenção de intimidar ou talvez desmontar o processo de grilagem e pistolagem que crescia no município de Santa Rita, nos limites com o estado do Piauí.
Lá chegando, fomos para a área eu, doutor Euclides, o delegado e um soldado, numa veraneio caindo aos pedaços. O delegado, preocupado com o Secretário, falou: “Os senhores deveriam fi car porque pelas informações é uma situação muito perigosa, e a pistolagem não respeita nem autoridade e o efetivo que temos não dá conta”.
Doutor Euclides respondeu, lembro-me como se fosse hoje: “Doutor, eu na minha idade não posso ter mais medo, e Gusmão é comunista. Idoso e comunista não carregam essa palavra medo no seu dicionário quando se trata de lutar pelo povo”. E lá fomos nós.
Pode-se dizer que muitas estradas já foram construídas de lá prá cá, mas muitos dos nossos ainda estão nas trilhas da reforma agrária ou acampados nos barracos de lonas pretas. Fez-se muito, e os dados do incra indicam que vive atualmente mais de um milhão de famílias, assentadas em áreas reformadas. É bastante, mas não é ainda a reforma agrária que queremos.
Ainda caminhando nas Trilhas se verifica (Carta Capital de 29/07/2011) a existência de cerca de 4 milhões de famílias de trabalhadores rurais sem-terra no Brasil, enquanto 175 milhões de hectares de terras são controladas por 66 mil fazendeiros improdutivos, o que entristece a todos. Ao mesmo tempo, assistimos ao processo de des- nacionalização do nosso território sem um instrumento legal capaz de controlar e regular o uso das terras para capitais estrangeiros, estima-se que controlam aproximadamente 30 milhões de hectares.
Logo, falar do Trilhas é lembrar de Waldir Pires, Emiliano José, Gumercindo Sá, Tereza do Movimento de Organização Comunitária (MOC), Luis Nova, irmã Cecília, Irailton do Prado do MST, Wilson Furtado da Fetag/BA, Aloísio Carneiro da Contag, Eugênio Lira, advogado dos trabalhadores assassinado em Santa Maria da Vitória por pistoleiros a mando de grileiros, e de muitos outros companheiros que trilharam e ainda trilham. Foram atores e personagens deste trabalho que é um legado para a sociedade. O trilhas da reforma agrária não acabou, alguém continuará escrevendo.