menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

Dicionareco: uma obra de presenças e sentidos

Maria de Lourdes Netto Simões

Apresentação em “Dicionareco” - terceira edição - 1969

Mais que um pequeno dicionário regional ou mesmo um mero glossário dos falares do cacau do sul da Bahia, Dicionareco das roças de cacau e arredores é a representação de um povo, de uma cultura. Assim, é dicionário, por sua organização em verbetes; e, acrescentando a objetivos estritamente linguísticos, é texto cultural em sua essência.

Esta terceira edição, póstuma, atesta o reconhecimento de seu valor. Publicado inicialmente em 1977, a segunda edição, de 2002, foi revista e ampliada pelo autor. Ambas realizadas pela Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, Bahia.

Além do corpo textual do livro (verbetes linguístico-culturais), integram o volume dois textos do autor: um introdutório, “Agradecimentos e desculpas”, em que, além do anunciado, esclarece o processo de produção do dicionário; e o segundo ficcional, na contracapa do livro, “Suspiros de uma enxada”, que tematiza o veio filosófico-social do trabalho. Em ambos, evidencia-se a forte presença da opção do autor pela linguagem simples, voltada para os falares da terra, conforme o teor dos verbetes. A estrutura do livro supera, assim, a de um mero dicionário.

Dicionareco traz o binômio aparência versus valor visível em níveis de produção de presença e produção de sentido. É que os termos peculiares que o compõem estão enraizados na historicidade e ultrapassam o significado meramente esclarecedor. Mais que isso: representam momentos, vivências, fazeres, sons, ritmos, danças. São formas de comunicação centradas no corpo, na materialidade da vida, no contato direto com os objetos culturais: são presenças.

Sem excluir o nível do significado, mas intentando “materializar” falas da cultura, essas presenças excedem o sentido hegemônico de uma interpretação, ampliando a visibilidade de outros fenômenos e questões. Aperfeiçoando o conceito de materialidade da comunicação, a produção de presença (do palpável, concreto, evidente e de impacto corporal) chama atenção para aquele lado de um texto, uma obra de arte ou um objeto cultural qualquer que não é acessível para a interpretação, mas serve como base para ela (Gumbrecht, 2010); além disso, leva em conta a ocorrência de rupturas que trouxeram modificações importantes na forma de pensar o sujeito, individual, unificado, que passa então a ser abarcado por novas identidades, mediante sua fragmentação (Hall, 2004).

Dicionareco das roças de cacau e arredores permite a oscilação entre efeitos de presença e efeitos de significado, o que lhe confere singularidade. Tal condição possibilita que a leitura inicie na materialidade e alcance o nível da interpretação; e, por outro lado, que a interpretação considere as condições materiais de produção do sentido, o outro lado da hermenêutica. Como afirma Gumbrecht (2010), “não há cultura puramente de sentido ou de presença; esses dois elementos estão sempre atuantes em maior ou menor grau”. É como acontece na produção de Euclides Neto.


uma genealogia do autor

Abrindo o Dicionareco com um texto à guisa de agradecimentos e desculpas, em verdade, mais que isso, Euclides Neto deixa claras sua origem e sua intencionalidade autoral, quanto à linguagem, quanto a suas opções e seus valores culturais.

Já evidenciando a força da escrita carregada de vivências, falas e oitivas, Euclides declara-se “mateiro que, nasceram os dentes, perdeu-os, ganhou-os de novo e tornou a perdê-los nas roças do cacau”. É como se reconhece, homem da terra, na sua simplicidade e materialidade. Para ele, essas qualidades parecem ser mais importantes que ter sido bacharel em direito, prefeito do município de Ipiaú e secretário da Reforma Agrária do estado da Bahia.

Produção, assim, recheada de presenças, esse primeiro texto declara sua memória da nação grapiúna: “Guardo as suas falas desde quando comecei a arrastar no chão do terreiro”. Lembra experiências, vivências na roça, até quando, a exemplo do pai, tornou-se “cavalhadeiro – uma espécie de cigano à paisana que vendia e trocava cavalos e burros”. Contando com essa experiência, declara: “Foi quando aprendi linguística”. Assim, assume-se da mata e, na memória materializada, vai compondo sua identidade. Sua aparência: “Carregando no couro, na cara, na roupa, nos hábitos, todos os sinônimos de capiau, matuto, caatingueiro [...] caipira, tabaréu, caititu. Confesso e assumo, salvo seja”. As vivências: “Quando fiz a primeira muda, meteram-me no buçal, quichim, caquinho de amansar brabo, chilena no peito”. Mas em seguida evidencia a dinâmica de sua identidade ao afirmar: “Não cheguei a burro de sela”. Sutilmente, na mesma linguagem substantivada do homem da terra, acrescenta o diferencial identitário, a fragmentação que fez dele um líder político, um literato: a teimosia, a rebeldia, a crítica:“Queixudo, pegador, tenho cosca na orelha, dou coice no estribo. Obedeço mais pelo passar da mão no fio do lombo que no bacaiau. Virei doutor”.

Construindo, assim, uma autobiografia, o texto introdutório “Agradecimentos e desculpas” é mesmo uma demonstração do que pode ser feito com nosso crescente conhecimento sobre o passado – território, de uma forma ou de outra, distinto e distante do presente.


construindo o dicionareco: os verbetes

Se o presente é um momento em contínua transição, a concepção de aceleração do tempo histórico e da transitoriedade do presente se afirmaria nos usos sistemáticos da linguagem. Os meios de comunicação, a tecnologia, a globalização contribuem para retirar as marcas locais, para a desidentificação. Daí que, quando Euclides Neto retoma suas lembranças e vivências, pensando em reunir os termos da linguagem do cacau, quer fazer que não fiquem esquecidos os traços grapiúnas. É o recurso que buscou para não deixar perder-se no tempo a presença das gentes do cacau.

Assim é que, no mesmo “Agradecimentos e desculpas”, além da genealogia do autor, esclarece a concepção dos verbetes que integram o Dicionareco.

Esse é um trabalho de garimpo: Euclides Neto recupera, da memória de suas vivências, palavras faladas e ouvidas. Também é um trabalho de pesquisa; como ele afirma: “Inúmeros verbetes [...] e expressões de outros além-mundo são amarrados neste mourão”.

Assim, na recolha do falar popular do cacau, remontando ao século XII, reconhece arcaísmos, que “o latim bruto como a pedra foi rolando na boca do povo”. Constata outras acepções para os termos dicionarizados no Aurélio. Identifica hibridismos prosódicos e semânticos: africanismos, lusitanismos; também diferenças entre o português brasileiro e o de Portugal. Admite neologismos: “Se campeia um termo para expressar a ideia e não topa, inventa, entorta o que já ouviu em alguma parte e solta-o”. Constata a evolução da linguagem: “A palavra é como o girino: à medida que vai perdendo o rabo e ganhando pernas e mãos, transforma-se em sapo e sai pisando terra firme”. Acrescenta à sua pesquisa os novos termos surgidos na labuta do cacau, desde os relacionados com os fazeres (“bandeirar”, “biscó”), até os onomatopeicos (“zabear”, “vagalumear”).

Pelo ouvir, pelo conviver, recolheu os termos, assumindo-os no Dicionareco: “Passaram a ser nossos, já que ninguém reclama, mostrando o ferro de dono na garupa”. Dessa forma, a celebração do relato oral em Euclides lembra os efeitos de presença que as histórias contadas produzem no ouvinte, o efeito de um passado que nos adentra como memória.

No estudar a evolução das palavras, observa ortografias, fonéticas, ritmos. Constata a lei do menor esforço, reafirmando a crença na espontaneidade da língua, ao contrário da rigidez gramatical: “O tagarelar dos becos e caminhos da roça impuseram o uso. Então os gramáticos ladinos meteram o bucal, levando a mula para onde desejam, com espora, taca e rédea presa”. E, mesmo sem ser filólogo, faz advertência aos empedernidos: “Nunca afirmem que estes ou aqueles dizeres viraram cazumbas, antes de conferir o ninho onde foram bruguelos”.

Na defesa do linguajar do cacau, defende o respeito à diferença, à identidade; afirma que “toda palavra leva uma carga emocional e uma intenção. É a intenção que dá o sentido”. Da materialidade da palavra, diz com “tanta naturalidade e muque que o outro entende [...] gera-se a palavra, que logo empena, voando no uso”. Em seguida, explica o sentido e a possibilidade de suas várias acepções: “Cascalho que se vai lixando na saliva do povo [...] o que não impede que outro bandeirador volte a revirar o folhiço, topando mais cabaças”.

Reconhece, na dinâmica identitária, o processo de hibridização: “Eis que não se diz mais “tetra hora”, substituída pela arribada “tchau!”. Nesse caso, ainda teme a colonização cultural, e, intertextualizando o poeta Bilac, valoriza “a última flor da laciana língua”. A sua intenção declarada é não permitir esquecer uma linguagem e, com ela, a cultura de uma nação. É como afirma: “Vale como esforço para bandeirar a prosa da gentinha dos eitos. Antes que os meios de comunicação, chuva remelenta, acabem de mermar o que resta do dialeto parido nesse setém de mundo do cacau”.

Dessa forma, Euclides Neto oferece uma aula original e competente, em que ficam explicitadas a materialidade da fala e as intenções do sentido. Sem pretender conhecer os recursos científicos do discurso, com sua peculiar simplicidade, prepara o leitor para o Dicionareco. No seu trato com a linguagem, deixa evidente uma produção de presença e uma produção de sentido, onde reafirma sua identificação com a força do falar do povo do cacau.

Nessas explicações, não esquece de informar que fez a recolha, também, em textos literários regionais e que registra contribuições de autores locais.

Dicionareco traz, de a a z, 986 verbetes (curiosamente, não há registros com a letra u). E mais oitenta verbetes relativos aos municípios cacaueiros, com as respectivas origens, que situam o território desse linguajar.


suspiros de uma enxada: um exemplo da ficção euclidiana

A contracapa do Dicionareco é ocupada pelo texto ficcional “Suspiros de uma enxada”, que começa com “Era uma vez...”, convidando o leitor a embarcar no mundo mágico, puro, do talvez. Mas a prosopopeia da enxada materializa o suspiro, que é sentir; remete ao simples. O seu narrador-personagem é a enxada, “a lâmina que rasga o músculo da terra e cria a vida”. Já daí a coerência da proposta euclidiana, a que o Dicionareco dá substância: a produção de presença.

Esse procedimento instaura outro tipo de representação (que na verdade é mais apresentação), na medida em que o mundo histórico do cacau é evocado em sua superficialidade e concretude, produzindo no leitor não um distanciamento em profundidade histórica, mas efeitos de simultaneidade. Assim, a intenção autoral parece ser a de evocar o mundo das roças do cacau e representá-lo, no sentido de torná-lo novamente presente.

Nascer do dia, sol, fazer. O contato corporal com a terra transporta, também, o leitor para o sentido filosófico, o sentir-se integrado ao mundo das coisas: “Abrir a cova das sementes, que morrem para nascer. Se o bisturi lanceta a carne e evita o fim; se a caneta escreve os poemas, os romances e as partituras; se o computador é o cérebro do homem, tudo não existiria se os feijoeiros não florissem”. São os efeitos de presença que ampliam a interpretação textual, reproduzindo sentidos a partir do referente mundo, numa compreensão de que tudo tem uma razão para existir.

Da produção de presença ao sentido, são percepções sensoriais (sentir, ver, cheirar, ouvir), que são apresentadas nos materiais que servem de base à interpretação, isto é, fazendo que a leitura inicie na materialidade e alcance o nível da interpretação: “Sofro primeiro o ferrão envenenado da terrível jararacuçu, quando o roceiro o puxa aos pés para sacudir a terra e separar a erva [...] Já vergada e cega, passam-me a lima ríspida ou me batem na face com a pedra rude”. Aí, a ideia da terra como uma sensação significa entender a impossibilidade de colocá-la em palavras sem perder seu caráter de materialidade; um momento de intensidade, em que a sensação possível alçanca bem além da interpretação tradicional.

Nesse mesmo processo presentificativo, aborda o social: “Planto o linho das toalhas de richelieu que realçam faisões nas baixelas de prata. Em oferenda, levo as frutas da sobremesa. Plantei as jaqueiras centenárias”. E, imprimindo a sua postura social, declara a atitude de paz diante da vida: “Não planto as metralhadoras nas trincheiras. Planto a rosa, o jasmineiro, o manacá, a flor do feijoeiro. [...] Não toco a música dos violinos. Acompanho os acordes dos canarinhos-terra das amanhecenças”.

Reconhecendo a sabedoria do povo expressa na linguagem do homem da roça, o autor, também homem das roças do cacau, traz essa linguagem e essa sabedoria para sua ficção, em presença e sentido. Por isso a tentativa de conectar leitor e época, apresentada através do recurso a um repertório de questões universais que aparecem trançadas nos temas cotidianos. São fenômenos materiais, tratados como superfícies, e visões de mundo, atingidas através da descrição de conceitos dominantes.


conclusão

Num canto de igualdade e irmandade, sem privilégios sociais, a escolha é dos mais simples. A história, convertida em singular coletivo, é experimentada como um processo em aceleração. Assim é que Euclides Neto assume a função de observador de primeira ordem, responsável pela produção de conhecimento sobre um mundo de objetos que inclui seu próprio corpo.

Sem a história pessoal desse autor grapiúna, o Dicionareco não seria o mesmo; o trabalho aproxima o leitor, realiza algo de que uma simples descrição cotidiana não daria conta. Se em Euclides, o contato humano com as coisas do mundo contém um componente de presença e um componente de sentido, a experiência leitora de sua obra permite experimentar esses dois componentes em tensão. A estrutura do Dicionareco promove, também, o diálogo. Daí a afirmação de que neste livro, fazendo conversarem os três textos – o explicativo, o dicionário e o ficcional –, a proposta é cultural. Assim também, Dicionareco das roças de cacau e arredores pode ser relido, na produção literária de Euclides Neto, da perspectiva cultural, em presença e sentido.

ilustração: Adrianne Gallinari
Maria de Lourdes Netto Simões
Maria de Lourdes Netto Simões: Doutora/Pós-Doc em Literatura Comparada e Turismo Cultural, UNLisboa. Pesquisadora na Universidade Estadual de Santa Cruz (Ihéus, Bahia). Ensaísta e consultora para assuntos literários e culturais.