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Camões no olho da mata

Euclides Neto

Artigo em “Dicionareco” - A Tarde - Salvador - 1998

Menino mateiro, só ouviu falar do poeta quando já buçava barba. Com certeza, minha professora leiga também não o conhecia. De Luís, só a autoridade do lugar: o inspetor Luizão, fitinha patriótica e já puída na gola, pés no chão, bigodeira opiniosa e espada feita ali mesmo no ferreiro, longa, heroica, para exemplar os fora da lei, votada e sancionada também ali. O outro Luís era o cacheiro, cacinha espinhuda boa na pimenta. O tal épico me chegou à cachola ao ser encarcerado no Colégio dos Jesuítas, e fui acuado pelo padre Farias.

Depois soube de um tal Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, que teceram espadachins em duelo de vida e morte, um apontando erros de redação no outro. Qualquer mortal ficaria com carmim no roto se fosse apanhado em uma das topadas de um dos dois. Que dizer dos escritores portugueses e brasileiros que entraram em corpo a corpo pelo agasalho dos pronomes oblíquos — guerra mais prolongada que a dos cem anos?

Se o autor de os Serões gramaticais fosse examinado pelo que traduziu O Papa e o Concílio seria reprovado. E vice-versa. Desde o emprego do infinitivo até a colocação da vírgula, sempre rebelde. Os dois sustentavam os seus arrazoados trazendo a jurisprudência linguística dos Castilhos, Herculanos e Vieiras, que, como toda jurisprudência, não é unânime.

Portanto, é bom que se precatem os devotos da pureza linguística, já que, com a colher de pau dos índios, africanos e ingrês, mexendo na mesma panela, está saindo uma maniçoba misturada com vatapá e filé de cordeiro inglês com molho de hortelã, muito gostosa, por sinal.

Incorrigível defensor dos roçarianos e da sua cultura, e em causa própria, andei ciscando o grande luso, que ninguém nega o que é, para justificar como nós cá do mato proseamos. Saímos à cata das pérolas nos pélagos de Vasco da Gama, conquanto marinheiro-de-água-doce e rasa.

Com a primeira e a segunda edições de Os Lusíadas à sombra das pestanas, publicadas em 1572, topei várias expressões, tidas como impias e até ímpias, dignas das labaredas de uma Inquisição Linguística, porém iguais às nossas. Assim, nós dizemos:


MENHAM: “Vejo a menham no ceo pintando as cores” (IV-65);

MESTURAR: “Ali co Tigre e Eufrates se mestura” (IV-64);

MISERA: “Misera sorte! Estranha condição!” (IV-104);

NODA: “Tingindo a que deixou de escura noda” (VI-60);

PEXE: “Onde sejas de pexes mantimento?” (IV-90);

PREGUNTAR: “Como quem de pregunta lhe pesara?” (V-49);

PRUMA: “Pruma na gorra, hum pouco diclinado” (II-98);

SALUÇO: “Que os saluços e lágrimas aumenta” (II-43);

DESPOIS: “Perguntalhe despois, se estão na terra” (II-6);

ENVEJA: “As envejas da ilustre e alheia história (V-92);

ESPRITO: “Por vos, o Rey, o esprito e carne he prompta” (IV-80);

FERMOSO: “Pisando o cristalino Ceo Fermoso” (I-20);

FRAUTA: “E nam de agreste avena ou frauta ruda” (I-5);

PUBRICA: “Onde o profeta jaz, que a ley pubrica” (VII-34);

FRUITA: “A laranjeira tem no fruito lindo” (IV-56);

HOMES: “Cousas do mar, que os homes não entendem” (V-16);

INGRÊS: “Era esse Ingrês potente, e militar” (VI-47);

MENEAR: “Amenear o leme não bastarão” (VI-73);

ENTRA PARA DENTRO: “Não entra para dentro obedecendo” (II-5).


Aí vai somente uma amostra do colega. Se acham que Os Lusíadas não valem porque também lembra Cordel de feira, vejam no Soneto 118 (que Afrânio Peixoto considera “ser o mais sentido e vivido de quanta poesia em qualquer linguagem dos homens” existia, inspirado quando o vate assistiu ao afogamento da nativa Dinamene, uma das suas muitas paixões, nas águas do Rio Mecom, e ele também se afogava, mas conseguia salvar a sua paixão ainda maior, que era parte do poema escrito na gruta de Macau): “MAGINAÇÃO os olhos me adormece. Lá numa SOIDADE, onde estendida”.

E na concordância verbal, ainda em Os Lusíadas:

“Se essa GENTE ERAM cristãos com mouros” (I-101).

Nos cacófatos, não é o ingênuo “ALMA MInha gentil que te partiste”, mas os hediondos:

“Que quem não quer comércio busCA GUErra” (VIII-92);

“Gente que as frescas águas nunCA GOsta” (V-6).

Se fosse no tempo do padre Farias, que sempre levava a longa vara aterradora, exemplaria ele o ousado com duas vergastadas pelo chulo e cinco pela agressão à sua língua materna. E com Raul Sá cantaria o sonoro zero, até por desrespeito.

Não me invoquem sinalefa, aglutinação, aférese, vocalização, silepse, sínese, concordância mental, licença poética, lei do menor esforço etc. (sempre existe uma lei protegendo os nobres).

Entre Camões e o fidalgos que dizem “fi-lo” e “fá-lo” (salvo seja!), nós mateiros preferimos ficar com o poeta. Ainda mais porque ele, que tem à mão 100 mil verbetes, preferiu escrever a sua epopeia com somente 5 mil, mais próximo do vocabulário ensangado que usamos. E olha que n’Os Lusíadas está incluído um bando incalculável de nomes geográficos e mitológicos, pelo que há um dicionário de nomes próprios somente do poema maior da flor do Lácio.

Camões ouviu e sabia muitos falares, pois viajou “por mares nunca de antes navegados”, indo “além da Taprobana”. Diríamos aqui fora que entrou no setém do oco do mundo. E foi tudo: de marinheiro a poeta genial. Sem esquecer funcionário público, quando ocupou, em Macau, o cargo de Oficial do Registro de Óbitos, no qual cometeu peculato e foi preso (um clássico também na corrupção, só que naquele tempo foi pra enxovia e não teve lei do menor esforço que desse jeito).

Contudo, o filho de Simião Camões domesticou o dizer português. Amansou os pássaros selvagens, vindos das revoadas migratórias do latim bárbaro, das arábias, do galego e do espanhol. A domesticação continuou. Com Eça colorindo a plumagem, chegando a Saramago, que enfincou o terceiro marco na língua. Conversa puxa conversa: faz anos disse ao último que, se ele competisse hoje com os dois, seria o escolhido pela Academia Sueca, com o Nobel, profetizando o galardão.

Respeito os gramáticos pelo que sabem e eu não sei. Tendo até inveja deles. Mas não precisam ir ao clímax quando pegam o sujeito da oração pelo rabo, n’Os Lusíadas. Jamais cheguei a tanto. Mesmo obrigado a soltar a matilha de cães farejadores na trilha do dito cujo referido, que sempre se escondia atrás dos encruados transitivos, adverbiais, objetos, distante donde foi levantado. E não tive dificuldade: acostumado a caçar com meu pai (pecado mortal que depois confessei a Deus e hoje não mato nem pulga), com intuito aguçado de hãhãhãi e nagô, tinha facilidade de topar o bicho logo que o padre Farias batia palmas, estumando.

Por tudo isso quero bem ao parceiro Camões.

Sobretudo porque proseia como a gente.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).