A política como território do bem comum
Emiliano José
Apresentação em “Um prefeito” - segunda edição - 2014
Posso me declarar um privilegiado. Já na fase madura de Euclides Neto, tornei-me seu amigo e admirador. Para além de tudo que se diga sobre ele, e há tanto a dizer, cabe a ênfase ao fato de que ele não se rendia às circunstâncias. O mundo, em sua realidade dura, não era necessariamente uma fatalidade. Não havia por que conformar-se com a dureza dos fatos, como se nada pudesse ser modificado. Sempre era possível mudar o mundo. O mundo podia ser transformado pela força dos sonhos, e pela disposição dos homens para deixar-se embalar cotidianamente por esses sonhos. O possível ele conhecia. Queria sempre o impossível. Era um andarilho a perseguir o impossível, ou o aparentemente impossível.
Com sua formação marxista da juventude, que ele nunca renegou, sabia da força dos materiais brutos da realidade. Conhecia-os bem. E sabia, também, e Marx o inspirava, que homens e mulheres são condicionados pelas circunstâncias, mas são eles que, juntos, fazem a história, nunca indivíduos isoladamente. Estes, no entanto, têm um papel essencial, se são capazes de perceber os sentimentos, as esperanças, os desejos dos homens e mulheres simples, que se alevantam soberanos quando há alguém que compreenda o quanto eles podem quando descobrem sua cidadania, quando recuperam a autoestima, se a haviam perdido.
Euclides sempre teve olhos para os mais simples. Sempre foi amigo dos humilhados e ofendidos, e sempre quis retirá-los dessa condição, porque conhecia a força e a generosidade deles. Diria ter sido ele um misto de Gandhi, Tolstói, Gramsci e Marx, com tudo o que significaram para a humanidade, diferentes e complementares entre si. O pacifismo determinado de Gandhi, o amor pelos pobres de Tolstói, a construção das trincheiras da transformação revolucionária de Gramsci, o olhar nunca superado de Marx sobre o capitalismo.
Talvez, mesmo que de raspão, coubesse dar uma noção ao leitor sobre o contexto político em que se dá a gestão de Euclides como prefeito de Ipiaú, entre 1963 e 1967, gestão que ele analisa neste livro. E falo brevemente porque com certeza os leitores, os mais velhos pela experiência vivida, os mais jovens pelos estudos, conhecem as coisas daquele período.
O ano de 1963 antecede o golpe militar. O Brasil vivia um período turbulento, positivamente turbulento. Estávamos sob o governo do presidente João Goulart, extraordinário personagem de nossa história, que assumiu em meio à crise ocasionada pela renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Assumiu sob um ruidoso ranger de dentes da direita brasileira, civil e militar, que nunca o engoliu.
Um período turbulento porque as classes dominantes nunca aceitaram nenhum governo progressista, reformista, como era o caso daquele dirigido por Goulart, que mostrou, enquanto esteve à frente da Presidência da República, sua disposição de realizar as reformas de que o país necessitava, e não conseguiu efetivá-las, sobretudo em decorrência do golpe de 1964. Darcy Ribeiro, ao falar de Goulart, disse com acerto que ele foi derrubado por seus méritos, contrapondo-se a visões que o queriam responsável pelo golpe desferido contra ele. Um homem comprometido com as melhores causas de seu tempo, um político sintonizado com o povo brasileiro, especialmente com os trabalhadores.
Era um período turbulento, ainda, porque as classes oprimidas, especialmente o proletariado urbano e os trabalhadores rurais, se mobilizavam fortemente na defesa de seus direitos e pelas chamadas reformas de base, cuja plataforma foi lançada de maneira mais clara num gigantesco comício no Rio de Janeiro, na primeira quinzena de março de 1964. As massas, nas ruas, queriam romper os limites daquela situação, conquistando mais direitos trabalhistas, direitos para os homens e mulheres do campo, reforma agrária, reforma urbana, reforma na educação, na saúde.
Vínhamos de uma década de ouro, cheia de esperanças, do projeto nacional-desenvolvimentista em andamento, do segundo governo Vargas e seu impulso industrializante, do suicídio de Vargas evitando o golpe em 1954, do governo Juscelino e a inauguração de Brasília, bossa nova, cinema novo, Brasil campeão mundial de futebol, predomínio do pensamento cepalino, Celso Furtado a iluminar os caminhos. Era tempo dos cinquenta anos em cinco. Goulart, ao assumir, político que em vários aspectos era diferente de Juscelino, caminha mais na direção das reformas progressistas, dos direitos da maioria.
No final de março de 1964 veio o golpe que jogou o país numa época de terror, de arbítrio. Acabou uma turbulência que buscava um futuro para o Brasil e iniciou-se outra, muito pior, porque regada a sangue, mortes, prisões, desaparecimento de pessoas. Ditadura. Que sepultou todos aqueles sonhos por 21 anos.
Na Bahia, o governador era Lomanto Júnior, com quem Euclides Neto terá relações muito respeitosas. Também no estado, cabe registrar, as forças progressistas haviam sido derrotadas nas eleições de 1962. Waldir Pires fora o candidato contra Lomanto Júnior, e representava o que havia de mais progressista na política baiana. Foi derrotado por pequena margem, como consequência, especialmente, da intervenção da Igreja católica, que não admitia que ele recebesse, como recebeu, o apoio dos comunistas. Lomanto fora o candidato dos católicos e das forças mais à direita. Waldir seria governador dos baianos somente em 1986, numa vitória memorável.
Como em todo o Brasil, na Bahia a repressão se abateu fortemente sobre todos aqueles que tinham afinidade, ligações com o governo Goulart, caso de Euclides Neto, que chegou a passar um telegrama de solidariedade ao presidente da República diante das ameaças de golpe, que acabaram se consumando. E imediatamente os olhos dos órgãos repressivos se voltaram para aquele prefeito, de notória posição de esquerda, e cujo governo, em sua maior parte, será sob a ditadura militar. Imaginem os leitores as dificuldades que ele enfrentaria, as tensões que viveria entre 1964 e 1967, quando termina o seu mandato. Nunca, no entanto, mudou de rumo, nunca deixou de fazer o que considerava correto. Porque, era um homem simples e de convicções profundas.
Um homem sereno. Não alterava a voz, o que lhe dava a condição de olhar o mundo de maneira tranquila, conviver de modo carinhoso com todos, sabendo inclusive respeitar seus adversários, mesmo que nunca transigisse com princípios que lhe eram caros. Uma vez, diante da crítica de um deputado, no governo Waldir, deputado que não comungava com ele em torno da luta pela reforma agrária, me dissera, tranquilo, que já conseguira acalmar o parlamentar. Como?, perguntei. Ele, com seu olhar sábio: “É preciso sempre alisar o lombo do burro”, metáfora que não deve ser tomada ao pé da letra, naturalmente.
1964: um prefeito, a revolução e os jumentos, sem que ele queira, apresenta Euclides Neto. Não apenas o prefeito, mas os sentimentos, princípios, a integridade, o espírito público, o olhar e a prática socialistas, a firmeza diante do arbítrio, a insubordinação permanente diante das injustiças, e aqui me lembro de Che Guevara, certamente outro modelo a inspirá-lo. Recomendo a todos os prefeitos e prefeitas que leiam este livro, publicado originalmente em 1983, quase vinte anos depois do início de sua experiência como prefeito de Ipiaú.
É uma lição de como administrar. Não apenas com honestidade, que é obrigação do homem público, e nisso ele nunca transigiu, mas com inteligência, com capacidade, e especialmente com os olhos voltados para os mais pobres. Tinha 37 anos quando assumiu a prefeitura. Deixou a advocacia enquanto governou. Não acreditava ser possível compatibilizar as duas coisas. Durante os anos como prefeito de uma cidade de apenas 16 mil habitantes, escandalizou muitos com sua preferência pelos pequenos.
Sem falar do carinho que nutria pelos jumentos, que não mais admitiu quevivessem presos num cercado, como antes. Foi um escândalo para as moças de fino trato e para os pais de família, que não queriam aqueles bichos soltos pelas ruas, capazes de todas as travessuras, inclusive as naturais, sexuais. Ele não recuou. Quando não estivessem trabalhando, que gozassem de toda a liberdade.
Por que os pequenos não podiam ter um pedaço de terra? E fez a Fazenda do Povo, extraordinária experiência de reforma agrária no âmbito de um pequeno município. Não por acaso, o governador Waldir Pires o convocou, em 1986, logo após a retumbante vitória sobre as forças do carlismo, para ser secretário da Reforma Agrária. Relutou, mas Waldir não admitiu recusa. E sua presença à frente da secretaria foi extraordinária, a ser contada em outro momento.
Ali, em Ipiaú, na Fazenda do Povo, foram acolhidos velhos, prostitutas, doentes, os que eram considerados incapazes, os deserdados, todos os que as fazendas de cacau não tinham interesse em empregar e que, reanimados, voltaram a trabalhar, a surpreender, tiveram a autoestima recuperada. Abrigou trezentas pessoas na fase inicial, que cedo cultivaram sua roça, tinham sua vaca e, sobretudo, recuperaram a alegria de viver.
Desenvolveu um programa habitacional, coisa de duzentas casas – sempre para os mais pobres. Deu um jeito na saúde e na educação, juntando esforços da comunidade e pedindo ajuda ao governo do estado e ao governo federal, insistentemente, em cartas que deveriam servir de exemplo para nossos governantes municipais. Nelas havia respeito, mas muita verdade, muita dureza. Quem sabe se inspirasse em Graciliano Ramos, que, como prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, no final dos anos 1920, produzia relatórios que também deveriam ser lidos nos dias de hoje como lições de um administrador competente e íntegro que mais tarde se tornou escritor, como Euclides.
Cada coisa tem de ser entendida a seu tempo. Euclides construiu uma escola numa área muito pobre da cidade, contrariando as elites, que consideravam que os investimentos deviam se concentrar no centro. Com muito esforço, quase a pulso, o prefeito conseguiu que nela se matriculassem cinquenta alunos. Primeiro dia de aula, a escola lotou. Todos presentes. No dia seguinte, faltaram 48. Euclides perguntou à professora por quê. “Compareceram dois alunos calçados, que arreliaram os demais.” O prefeito baixou então a surpreendente portaria, que fez afixar na porta da escola, com a determinação: “De hoje em diante fica terminantemente proibido aluno entrar calçado na sala”. A frequência voltou ao normal. Como não tinha dinheiro para calçar os 48 pares de pés descalços, melhor determinar que os dois com os pés calçados deixassem os sapatos em casa. Depois se veria o que fazer. O essencial era que os alunos estivessem na sala de aula, aprendendo.
Fez até uma reforma bancária. Olhava meio desconfiado para o fato de que a prefeitura dava preferência aos cofres do Banco da Bahia, cujos lucros eram carreados para outras praças, sobretudo Salvador. Determinou que o dinheiro da prefeitura fosse então depositado na Cooperativa de Crédito de Ipiaú. O dinheiro voltaria aos associados em forma de empréstimos, e o rateio beneficiaria a todos. Quando, no decorrer do inquérito policial militar que tentava incriminá-lo, perguntaram-lhe se votaria em Adhemar de Barros, Carlos Lacerda ou Magalhães Pinto para presidente, sabidamente lideranças civis do golpe de 1964, ele respondeu tranquilamente que não.
E sobre Magalhães Pinto diz que não votaria nele porque era dono de bancos, que emprestavam dinheiro a juros extorsivos. “E como sou ligado à agricultura, filho, neto e bisneto de lavradores, vivendo no meio rural, não posso aceitar como presidente um banqueiro, explorador dos que plantam, acho uma desgraça para a agricultura.” Simples assim.
Entre as tantas coisas que fez, construiu o Ginásio Agrícola, construiu hospital, desapropriou áreas para fazer casas para os pobres, acabou com o favoritismo, criou inimigos por suas atitudes, por aquilo que chamaríamos hoje inversão de prioridades ou, numa outra leitura, redução da pobreza, distribuição de renda, melhoria da qualidade de vida do povo. Era tão firme, tão convincente e tão verdadeiro em seus propósitos que conseguia atrair até setores conservadores do município para suas propostas. Por tudo isso, por sua atuação exemplar, pelo muito que realizou, Ipiaú foi declarada pelo governo federal município modelo da Bahia, uma façanha, se considerarmos que era a época da ditadura.
Viveu dias atormentados com o golpe. Afinal, tinha fama de comunista, e naqueles dias não faltavam os que pretendiam prestar serviço aos militares. Sua mãe, apavorada, preocupada com tanta perseguição que a ditadura movia contra o filho, enterrou ou queimou os livros que ele escrevera e publicara, como Os magros, por exemplo. Vale a pena conferir como um homem corajoso e íntegro reage ao arbítrio. E como uma pessoa correta é capaz de ganhar o respeito até mesmo de muitos de seus adversários.
Diante dos interrogadores, falava a verdade de sua administração, e não negava seus gestos políticos, como o telegrama em que manifestara solidariedade ao presidente da República, João Goulart, no momento do golpe. O relatório final das investigações é uma preciosidade, pelo reconhecimento da correção das atitudes de Euclides Neto à frente da prefeitura, sobretudo baseado em declarações de adversários políticos, que não negavam estar diante de um homem incapaz de subtrair para si um centavo do dinheiro público.
Há um episódio que antecipo, e o leitor há de acompanhá-lo em detalhe. Um general visita o município. Juntos, no carro, o governador Lomanto Júnior, Euclides e o militar. “Que cidade é esta?”, pergunta o oficial. Euclides: “Ipiaú”. “Ah! É daqui a Fazenda do Povo, e o prefeito comunista, o que soltou os jumentos na rua?” Lomanto, firme: “Se o prefeito é comunista, também sou”. O general surpreendeu-se com a resposta do governador e, incrédulo, perguntou: “Como?”. Lomanto insistiu: “Se o prefeito é comunista, também sou”. O militar pediu que o levassem imediatamente a Jequié, onde pegaria o avião e voltaria para Salvador.
Euclides nunca deixará de elogiar Lomanto por aquela atitude e por várias outras em que demonstrava respeito pelo povo de Ipiaú e por ele, que no livro fala também do jornalista Jorge Calmon, que recusou, como secretário de Justiça, que o fórum da cidade levasse o seu nome. Por respeito à lei, neste caso tão pouco respeitada. Euclides sempre o admiraria por isso.
Prefácio... bem, é só um prefácio. Tenho que parar, senão escrevo mais do que devo. E um livro é um livro, é ele que provoca o prazer, que nos estimula a vida, especialmente se o autor for bom, como neste caso. Em 1964, as fronteiras entre a literatura e o relato factual se dissolvem. Euclides consegue emprestar ao relato fundado em fatos a carga emotiva, o talento e a sabedoria de quem conhece profundamente o gênero humano, além, é claro, de evidenciar seu conhecimento filosófico, que lhe permite transitar por Marx, Freud ou Lacan.
Este livro, no entanto, para além de enaltecer os talentos e conhecimentos do escritor, é uma lição de vida e uma lição de política.
A política como o território do bem comum. A política com uma visão missionária, redentora da humanidade. Como instrumento civilizatório. Como caminho para a solução dos problemas humanos. Como espaço do diálogo. Como território para cultivar princípios. Política como respeito ao povo.
Política para servir aos mais pobres. Política que tem lado: o dos desvalidos. Tudo isso Euclides ensinou com sua vida. Tudo o que ele compartilhou com Angélia, sua companheira de toda a vida. Tudo o que ele ensinou a Angélia, Patrício, Espártaco, Denise e Marcelo, seus filhos e filhas, cujas vidas seguem a trilha do pai.
As sementes de sabedoria, ele as espalhou ao longo da existência, cotidianamente, sem nenhuma pretensão professoral, com uma impressionante humildade que nunca lhe retirou a também impressionante autoridade. Amou sua aldeia, profundamente. E foi a partir dela, da sua Ipiaú, que deixou lições profundas para todos nós. Universais. Para nunca mais serem esquecidas.