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O lixo atômico

Euclides Neto

Folha do cacau - Camacan - BA - 1986

Derrubamos as matas, queimamos a vitalidade da terra, usamos BHC, tordon, agrotóxicos os mais ferozes, enfim. Matamos os rios: lembro-me das Contas, róseo, transparente, de areias faiscantes a deslizar suas léguas sem os detritos humanos que o emporcalham hoje. Espoucamos a bomba atômica e as chernobis. Construímos as angras para sermos potência mundial. Pretendemos desgraçar o Raso da Catarina, morada dos pássaros canoros que inventam cores e notas musicais; lá onde os cavalos selvagens bebem liberdade. Acham pouco os verões grelhando o homem e já falamos em transformar a caatinga na lixeira do átomo desintegrado. Poluímos o mundo com o ódio, a vingança e a cupidez.

Mesmo assim, apesar de tudo, as sapucaias vestem-se de bonina neste resto de primavera, alteando-se em jarões — ilhas de beleza nos verdoengos boqueirões. Em lilases — saudade paramentam-se as sucupiras, e os mulungus forasteiros incendeiam-se em brasas, entrando em cio. Enciumadas, as copas do jequitibá bó viram chuveiros de esmeraldas, preparando-se para gotejar as minúsculas estrelas-d’alva. Os paus-d’arco estreiam gemas de ovo na algazarra dos amarelos. Os pinheiros esgalham-se enfeitados com pepitas esfareladas de ouro bíblico. Os cobis copiam-nos, caprichosos, copiosamente. Até o pau-brasil que plantei há um quarto de século, junto à minha varanda, é um bambúrrio, florido, mostrando-se, cobrando admiração. Também ele comparece ao esplendor da natureza. Não me lembro de tê-lo visto tão soberbo no amarelo-bandeira-nacional-emocional, contrastando com as folhas verde-patriota. Só agora reparei: misturada ao verdor denso, em cada corola, existe uma pétala rúbida, eritrofilada, mágica. Não me recordava do adorno. Fico a meditar se tal nuance não fará parte do nosso estandarte, exatamente na proporção de uma pétala entre as tantas.

Mas isso é outra conversa para a Constituinte.

Preferimos, agora, ficar com a natureza imemorial telúrica, que traz a sua oferenda pródiga. Precisamos arranjar tempo para contemplar as serras e gozar as matas — quase aceiros pela dilapidação. Antes que seja tarde. Jamais estiveram tão lindas e esplêndidas, e alegres, cantando odores, como neste ano, também comemorando o da Paz. Nunca vi tanta cantoria de passarinhos nos arvoredos ensinando-nos que, apesar do mal que lhes causamos, perdoam-nos e nos retribuem com flores, modinhas perfumadas e contrita satisfação espiritual.

Certamente a natureza aprendeu com Chateaubriand, em “o Gênio do Cristianismo”: “Deus é como o sol: doira as nuvens que tentam encobri-lo”.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).