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Lula e o Quinau

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador-BA - 1989

As palavras são como os seres vivos: nascem, crescem e morrem, restando os fósseis para os curiosos da gramática histórica. Quinau é uma delas. Se não morreu, hibernou. Mas não encontramos outro nome para usar nessa lição que Lula dá nos políticos, mesmo não sendo um escolástico. Sobretudo em nós canhotos. Nós da destra, nem se fala — estes viraram pó, não restando, sequer, ossos.

O P.C.B. (com do e sem) é inegavelmente a grande matriz, a cepa do socialismo no Brasil. Acusava-se Joaquim Nabuco de comunista — lá pelos oitenta e tantos dos mil e oitocentos. Mas foram os seguidores de Prestes que se definiram como marxistas-leninistas. Daí para cá padeceram o que os pecadores sofrem no inferno. Perderam unhas arrancadas a alicates, tiveram os orifícios do corpo enfiados por objetos eletrizados, ficaram presos sob escadas de madeira, enquanto as botas marcavam, subindo e descendo, o suplício das horas aflitas e burocráticas. Foram eles que seguraram heroica e estoicamente a brasa do idealismo, legando o que se fala hoje de socialismo, mesmo incriminados de comerem fígado de criancinhas, de abominarem pai e mãe, de puxarem dos seios maternos as que nasciam, para entregá-las ao Estado (leia-se creche que hoje todo mundo adota, depois que a mulher deixou de ser simplesmente a parideira). A mesma propaganda que demonstrou ser a coca-cola um néctar dos arcanjos, embutiu na mente dos incautos a convicção de que o comunista é um Anti-Cristo. O nome passou a ser labéu.

Aí começa o primeiro quinau. Nada de socialista, muito menos comunista, na sigla. Espantava e continua espantado. Surge o PT — Partido dos Trabalhadores. Queiram ou não, foi Getúlio quem gerou a mística com seus “trabalhadores do Brasil”. Ainda estava vivo na mente do povão o eco dos direitos trabalhistas. O PTB perdeu a rota (não tinha os xiitas pra conservá-lo, nem podia tê-los, porque o próprio Getúlio era homem de pecados e virtudes). Quem se aproveitou do que havia de melhor foi Lula. Apareceu o PT, autêntico, sem pressa, firme, peneirando na urupemba fina os seus filiados.

O segundo quinau vem quando a Igreja optou pelos pobres, alinhando-se vigorosamente. Falar em pacto com a Igreja era para um comunista, no mínimo, heresia, mentalidade pequeno-burguesa. Li agora que o admirável Roberto Freire ainda faz cara de nojo com a união. Esqueciam-se os leninistas que o púlpito no Brasil sempre foi o eficiente palanque da história. E que o povo só é convencido pelas adocicadas parábolas bíblicas. Mas os sicks seguidores do Cavaleiro da Esperança fugiam da cruz — no tempo em que se dizia ser a religião o ópio do povo. Ora, ninguém foi mais socialista que o Cristo, mesmo antes do Novo Testamento. O PT ganhou, portanto, os padres, o grande aliado desse mundão de meu Deus — dos esconsos e socavões até os barrancos dos rios.

O terceiro quinau é no modo como as ideias são passadas. O PCB editava jornais que somente os doutores entendiam. Lembrava Tobias Barreto que, morando no interior de Sergipe, publicava na gazeta local os seus artigos em alemão e, ao cair da tarde, sentava-se à porta de casa para degustá-los. Só ele. Pois, obviamente, ninguém ali conhecia a língua de Goethe. Os nossos jornais comunistas foram escritos, durante muito tempo, praticamente no mesmo idioma. Só os intelectuais liam, discutiam, adentrando nos conceitos de “O Capital”. Os trabalhadores do cais, os chamados camponeses (o Brasil nunca teve camponês!) jamais puderam digerir o indigesto prato filosófico. Lula viveu o que Marx quis dizer, esperou que a goma decantasse nas gamelas da Europa, veio da graxa das fábricas. Como homem bem-dotado, intuiu a verdade de que era injusto o homem explorar o homem. Percebeu a mais-valia na cesta básica. Mastigava o marxismo para os outros operários com a força do profundo conhecimento de causa. Não inferia uma verdade — vivia a própria verdade. Não precisava aprender nos livros aquilo que era a sua hora a hora no barraco e na fábrica.

Tudo isso vale como autocrítica.

Quarto quinau: nada de paredão, pega-pra-capar capitalista. A luta era o salário, comida, casa, coberta, leite para os meninos, trabalho — elementares. Disto os operários entendiam. Até ouvir falar de Engels, Hegel, Marx era outra história. Claro que os comunistas ajudaram nas greves, na conscientização. E apimentavam, fermentando o pão. Deles, dizia-se que eram tão poucos que nem medo faziam, notadamente porque os mais afoitos viraram desaparecidos ou mutilados.

Lá vem Lula. A liderança de Lula. O carisma. A empatia Lula preenche, então, tudo que precisava para o grande partido socialista. Sem ser comunista, di-lo a todo momento. Mas socialista confesso e autêntico, no conceito moderno.

Podem combater os postulados do PT. Mas negar o estadista, a capacidade de arregimentar o povo, aglutinando sábios, poetas, cantores, escritores, passou a ser teimosia preconceituosa. Quem é capaz de tanto tem condições de governar o País. Ninguém é mais indicado para tornear esta barra imensa chamada Brasil, com suas ranhuras e roscas. E paciente, cuidadoso, perfeccionista. Sem o descuido dos albardeiros.

Dizem que é inexperiente. Ora, ninguém viveu mais intensamente que Lula. Torneou sua própria existência. O outro sabe do gozo, da vida folgada, caindo-lhe no colo as doçuras das oligarquias.

Percamos os preconceitos acadêmicos, pois. Sejamos humildes. A pior discriminação atualmente não é a racial: é a contra pobre. Ninguém discrimina o homem rico de cor. Discrimina-se o branco pobre. Se alguns se acham elite, conformem-se: o torneiro é o mestre, o que aprimora, também elite, e respeitado no seu ambiente de trabalho.

E de agora por diante não usemos a metáfora militar: “sou um soldado dessa campanha”, seremos, sim, um aprendiz de político nessa monumental oficina chamada Brasil.

Lula conseguiu fazer o doce de caju, sem o travo que alguns não gostam.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).