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Grande exemplo

Euclides Neto

A Tarde - Salvador-BA - 1994

A Fazenda Retiro, no município de Malhada, é constituída de caatingas, alagadiços, barrancos do Rio São Francisco, pastagens mansas, muitas roças e milhares de reses. Nela vivem centenas de moradores espalhados pelos 43 mil hectares. Todos trabalhavam para o Dr. Valdemar Moura, também ali residente, desde os tempos imemoriais dos seus antepassados. Assim como o dono, os agregados plantavam de um tudo e podiam criar gado, égua, carneiros, cabras, porcos, aves e pescar nas farturentas lagoas. A cada mês, quatro famílias dos 24 vaqueiros ganhavam uma rês abatida destinada à alimentação. E para ser mais justo, as que tinham em um mês os quartos traseiros, mais cobiçados, recebiam, no seguinte, os dianteiros, carne de segunda.

Nas grandes enchentes, quando as águas ameaçavam até a centenária casa-sede, todos se mudavam para a parte alta da caatinga, em acampamento improvisado, inclusive a família do chefe. Até que as águas baixassem.

Aos domingos, Dr. Valdemar pregava o evangelho, na sede, à sombra dos frondosos tamarindeiros, para os moradores que ali se reuniam. Quando não era ele, aparecia a filha, a simpática Dra. Elisa, administradora de empresa, responsável pela burocracia da fazenda, ao lado de Rui, técnico mecânico, e Dr. Plínio, veterinário, tocadores de serviço.

A população, ordeira. Ninguém jogava, nem bebia, nem fumava. Quem tirasse moça de casa ia ajoelhar ao pé do altar, com direito aos sacramentos e registro civil.

Havia harmonia social. Falou-se em desapropriação da fazenda para reforma agrária. Os laudos do INCRA, contudo, desaconselharam a medida, pois a propriedade cumpria a função social, apesar da extensão. Mesmo assim, Dr. Valdemar prontificou-se a doar cinco mil hectares, mais de 10% da área. Com uma condição: que as terras fossem distribuídas aos seus agregados, em condições melhores às que eles já recebiam. Achei prudente não mexer no time que jogava certo.

Agora Dr. Valdemar me comunicou que distribuiu a fazenda com os nove filhos, todos formados, mas com a terra no gene, lavradores, portanto. Tirou 10%, cerca de cinco mil hectares, e doou aos seus mais de 150 trabalhadores, que já estão recebendo as suas glebas de 30 hectares para cada família, área superior à que o INCRA entregou aos assentados do Projeto Serra do Ramalho, quase confrontante.

Reservou também 10 mil hectares de alagadiços onde, anualmente, nas grandes enchentes, os pássaros aquáticos do pantanal vêm procriar e só retornam após a baixa das águas. Nessa época a sua preocupação maior não é com o gado que morre afogado, ou de fome nas ilhotas, mas com os animais silvestres (onças, veados, caititus, aves etc.) que emigram para as terras desmatadas dos vizinhos e são abatidos.

Parabéns, Dr. Valdemar Moura e dona Nilsa. Que seus netos (como vai Rodrigo?) e os netos deles possam continuar na rústica e acolhedora casa do Retiro, pelos tempos além, com a mesma tradição de humanismo e respeito à natureza.

Que os seus gestos sirvam de exemplo. Grande exemplo!

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).