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Reforma agrária na Bahia

Emiliano José

Posfácio em “Trilhas” - terceira edição - 2013

1. Situação fundiária brasileira

A historia fundiária do Brasil está em constante mudança desde seu ínicio. Todas as transformações ocorridas a partir da instituição das capitanias hereditárias, distribuição de sesmarias e a simples grilagem das terras públicas, foram e são destinadas a promover a concentração das terras. O latifúndio decorrente desse processo tornou-se por muitos séculos o principal fator de empobrecimento da população rural brasileira, restando para esse contingente majoritário da nossa gente migrar para as cidades grandes, promovendo a favelização e a violência das nossas metrópoles e que hoje se estendem para o interior.

No século XIX a situação de acesso a terras estava tão anárquica que a coroa portuguesa resolveu em 1850 intervir na situação criando a Lei n. 601, de uso e regularização das terras públicas. A lei, como as intervenções anteriores, favoreceu os grileiros, interpondo processos onerosos de compra de terra, excluindo grande contingente de pequenos agricultores, que mais adiante se expandiu na simples situação de posseiros. No século seguinte está condição pouco modifi cou-se ensejando o esbulho sofrido pelos posseiros e contribuindo mais uma vez para a migração dirigida às cidades.

Com a libertação dos escravos em 1888, o Brasil perdeu a oportunidade de promover um processo de distribuição de terras, aproveitando o grande contingente de agricultores experientes e expandindo a agropecuária estagnada pelo latifúndio.

Na República as terras, antes domínio do governo central, passam ao domínio dos Estados, a situação complica-se porque os registros históricos revelam que as estruturas políticas locais foram sempre conduzidas pelo coronelismo latifundiário.

Com o advento da industrialização, a situação existente no campo em função da grande massa de trabalhadores desempregados ou subempregados foi extremamente funcional, pela formação de um “exército de reserva” já estudado por Marx. Esse fato determinou os baixos salários recebidos pelos trabalhadores nas indústrias até recentemente, só começando um processo de mudança mais signifi cativo com as transformações tecnológicas exigidas pelo capital.

A partir dos anos 1960, dois processos ocorreram simultaneamente caracterizando o estado atual da situação fundiária do Brasil: de um lado, os trabalhadores rurais conseguiram formar sindicatos por todo o país, inspirados na ação do pcb criado nos anos 1920. Para fazer frente a esse movimento, os proprietários organizaram sindicatos patronais, partindo para a eleição de representantes no congresso nacional, assembleias legislativas e câmara de vereadores terminando por criar as bancadas ruralistas, muito ativas, desavergonhadamente contrárias a qualquer modificação no estado do campo. De outro lado, as ciências agropecuárias a partir das universidades, deram sustentação à empresa de pesquisa como a Embrapa e outras mais, que juntas tornaram viável a exploração dos cerrados e tantos outros biomas, permitindo a produção de cana, soja e milho dando ensejo a uma nova e brutal concentração de terras, que supera em muito a distribuição de glebas realizada pela reforma agrária.

2. Situação fundiária na Bahia

A questão fundiária na Bahia seguiu as regras instituídas pela colonização e posteriormente pela República. Teve seu início com a casa da torre, que expandiu os seus domínios pelos sertões, espalhando currais por toda a região. O recôncavo sul e parte do baixo sul foram também importantes na produção de alimentos para Salvador, a jovem capital do Brasil.

Com início do tráfego de escravos o empreendimento açucareiro tornou-se a principal atividade colonial. Os engenhos ocuparam todo o recôncavo e o baixo sul com imensos latifúndios. Como toda a terra disponível era então utilizada no plantio de cana, a produção de alimentos era precaríssima, levando os escravos à fome permanente apesar dos trabalhos e castigos exorbitantes. Enquanto isso a pecuária continuou abrindo caminho no semiárido e região de Vitória da Conquista, Itapetinga e arredores, sempre em grandes sesmarias e terras griladas. As grandes propriedades dos engenhos eram caracterizadas pela baixa produtividade. Enquanto mantiam o monopólio da produção açucareira expandia-se enriquecendo os seus proprietários e a Igreja, que se tornou uma instituição dominante. Assim que surgiu a concorrência externa, principalmente da América Central, a atividade regrediu deixando os grandes latifúndios improdutivos, mantido apenas como reserva de valor, tendo como forma de movimentação básica a pecuária extensiva. Com o enfraquecimento do poder econômico dos latifundiários de cana, um número expressivo de pequenos posseiros instalou-se pelas áreas devolutas do recôncavo e sul da Bahia. Por essa época os ricos usineiros e negociantes desenvolveram interesse pela Chapada Diamantina, fincando ali os seus tentáculos dominadores.

Por esse tempo a cultura do cacau desenvolvia-se no sul do Estado, logo tornando-se o principal produto da economia baiana.

Com o enriquecimento de grandes produtores, grandes áreas das regiões da pecuária foram adquiridas pelos cacauicultores, principalmente em Itapetinga, Itaju do Colônia, Itororó etc.

A história da lavoura cacaueira é bem conhecida. Foi um empreendimento todo ele desenvolvido por pequenos produtores vindos dos sertões baianos e sergipanos. Ao chegarem à região encontraram as terras já griladas, sendo a maioria absoluta submetida ao regime de trabalho denominado “contrato”. Essa relação de trabalho consistia em o “proprietário” da terra ceder uma gleba ao trabalhador para o plantio de cacau, sem adiantamento sob qualquer forma, especialmente sem pagamento em dinheiro. No final de três a quatro anos, os cacaueiros eram contados e os contratistas enfim recebiam um pagamento. Muitas famílias recebiam o pagamento em balas assassinas.

Assim se formaram as grandes fazendas.

A compra de roças prontas por pequenos agricultores era outra forma de crescimento das fazendas, nem sempre com o consentimento dos posseiros. Daí a região cacaueira ter se tornado uma das áreas mais violentas do Estado da Bahia.

Recentemente o oeste da Bahia constituiu-se em área de expansão de latifúndio, quando as empresas de pesquisas ofi ciais desenvolveram técnicas para o aproveitamento dos cerrados. A produção de grãos, café, cana e pecuária intensiva, com grande inversão de capitais só acessível a grandes empresas.

3. A eleição de Waldir Pires e a criação da primeira Secretaria de Reforma Agrária do Brasil

A eleição de Waldir Pires, expressiva de todos os pontos de vista, varreu a Bahia como uma onda de otimismo revogando a ditadura de uma oligarquia dividida entre o “modernismo” da indústria e o conservadorismo do apoio incondicional ao grande capital e ao latifúndio: entre a festa e a fome. Essa a bandeira filosófica de ACM e seus seguidores. Diante dos movimentos centenários dos processos excludentes da situação fundiária do Brasil, o governador recém-eleito do Estado esboça a ideia de uma secretaria voltada para a intervenção no setor.

Não sei das relações anteriores do governador e o secretário nomeado: dr. Euclides Neto. O fato é que essa escolha foi o elemento determinante da força que a secretaria desempenharia no processo de reforma agrária na Bahia e no Brasil.

Como um parêntese, talvez muito longo nesse raciocínio, é preciso introduzir um fato para o qual convido Emiliano José a se pronunciar: como é que um organismo como a car, parte da Secretaria do Planejamento, passa de repente a ser a base operacional da Secretaria de Reforma Agrária e elemento institucional de todo o desenvolvimento do processo de apoio aos programas dirigidos aos assentados e ocupantes de terra? Sabe-se que a CAR, antes e depois do governo Waldir, foi sempre e continuará após esse tempo importante agente de cooptação de trabalhadores com fins eleitorais.

Voltando ao centro do raciocínio, nomeado o secretário operou-se uma total reviravolta na forma de pensar e agir no programa nacional de reformulação de latifúndio. Alguns dos conceitos que foram estabelecidos podem ser assim resumidos:

  1. A reforma agrária não pode ser compreendida como programa técnico, mas essencialmente político;
  2. As ocupações realizadas pelos trabalhadores são qualitativas e muito inferiores em termos numéricos à grilagem perpetuada pelos latifundiários;
  3. Uma secretaria de reforma agrária deve funcionar como apoio incondicional aos excluídos secularmente da terra.

Dr. Euclides ao assumir a secretaria tinha apenas o professor João Saturnino na car e uma estrutura de governo, em todos os níveis dirigida por pessoas profundamente comprometidas com as administrações anteriores aliadas com o grande capital e o latifúndio. O pequeno produtor e o trabalhador sem terra eram apenas massas para manobras eleitorais demagógicas. O populismo “esclarecido” dos seguidores das propostas de ACM.

Com esse capital, iniciou-se o processo. O Incra, órgão federal responsável pela reforma agrária, entendia o programa como puramente técnico. Esse equívoco emperrava a marcha das ações. Entretanto o superintendente do Incra na Bahia expressava ideias semelhantes àquelas explicitadas pelo secretário, tornando-se o mais ativo dos superintendentes brasileiros no encaminhamento de processos desapropriatórios. É nesse momento que a organização dos trabalhadores torna-se mais importante, promovendo a ocupação das terras, tanto as encaminhadas para a desapropriação como aquelas que os próprios trabalhadores consideravam improdutivas por não cumprirem a função social como previsto na Constituição.

Dr. Euclides lutava então em duas frentes políticas igualmente importantes: apoio incondicional às organizações dos trabalhadores sem terra e no relacionamento com os secretários estaduais de reforma agrária dos demais Estados, sendo o mais ativo na criação do Fórum Nacional de Reforma Agrária, com reuniões regulares em Brasília, como forma de pressionar o governo no sentido de promover de fato o programa, que tinha no presidente Sarney o opositor principal.

Finalmente com a saída de Waldir Pires e a posse de Nilo Coelho, um dos maiores latifundiários da Bahia, a estrutura foi paulatinamente desmontada com a dispersão das equipes já treinadas, e enfi m com a saída de dr. Euclides da secretaria.

Entretanto, o trabalho realizado prosseguiu com as organizações dos trabalhadores refundidas com o apoio fi rme e didático oferecido por dr. Euclides e sua equipe.

Artigo publicado na Tribuna da Bahia, em 18 de junho de 1991.

ilustração: Adrianne Gallinari
Emiliano José
Emiliano José: Jornalista, escritor, professor da Universidade Federal da Bahia.