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A enxada de Euclides Neto

Antonia Torreão Herrera

Apresentação em “A enxada” - segunda edição - 2014

“Albertina não suportou mais a fome e a cidade.” Assim começa o romance de Euclides Neto, escrito em 1986,que tem por título A enxada, emblematicamente significativo do enredo que se desenvolverá e já indicado no subtítulo: “e a mulher que venceu o próprio destino”.Trata-se da valorização do instrumento de trabalho típico do lavrador, do homem que labuta com a terra e dela tira seu sustento. Ao associar a vitória da mulher à enxada, o romance aponta para a direção ética de sua opção estética: valorizar o trabalho e a vida no campo como salvação para o homem, lavrar uma escrita simples e honesta que transmita valores edificantes, recuperar a força do narrador clássico, segundo conceito do filósofo Walter Benjamin, daquele que transmite sua experiência de vida como lição, a sabedoria adquirida pela herança ancestral. Reconciliar a literatura com a vida.

A enxadaé significativamente um romance da maturidade, é o décimo primeiro livro de Euclides Neto, quando ele já tinha 61 anos.

A enxada é uma narrativa de natureza mitológica, de acordo com o conceito teórico de Todorov, que nos fornece uma história com princípio, meio e fim, e é construída em torno das façanhas do herói. O autor elege uma figura feminina forte e determinada que prima pelo bom caráter e se guia pela força de suas raízes— aquelas que lhe assegurarão vitória em suas travessias e vigor em seu dia a dia. O que são essas raízes?

São os valores arcaicos do campo e da lavoura, o trabalho honesto, a labuta (quem cedo madruga, Deus ajuda), a correção dos atos, a fé em Deus, a honradez da palavra, o sentimento humanitário, a confiança no outro, a sabedoria de quem volta a escutar as lições arcaicas de seus ancestrais.

Tomando a enxada como motivo associado, segundo terminologia de Tomachevski, ou seja, o motivo que vai desencadear a ação, a enxada, instrumento de trabalho do campo, será o referente concreto do real e o referencial simbólico do romanesco.Esse instrumento será redimensionado como valor maior no sentido da transformação. É com a enxada como extensão de seu corpo que Albertina, a protagonista, transformará seu viver. Retornando da cidade para o campo, depois de uma estada decadente e sofrida em Jequié, a protagonista instala-se na beira da estrada, em uma cascalheira, onde constrói uma palhoça com folhas de ouricuri, e em seguida, aproveitando uma nesga de terra, inicia uma plantação com sementes que carrega consigo. A enxada velha e quebrada que encontra abandonada em terreno alheio é a que vai lhe permitir primeiramente sua reconstrução como ser humano. Enxotada do centro urbano como coisa sem serventia, Albertina, cercada de filhos e de uma cachorra com sua ninhada, encontrada pelo caminho, assim como um bebê abandonado, que será chamado de Achado, resolve voltar para o campo. Instala-se inicialmente do lado de fora da cerca das terras dos grandes proprietários, até conseguir com seu trabalho e força de vontade ter sua própria terra e ainda comprar de volta a fazenda que fora de seus antepassados.

Metaforicamente, ela carrega as sementes das quais é a fiel depositária: as sementes da salvação e da redenção do ser humano — aquelas que lhe permitem plantar e colher o bem, prosperar, unir a família que a cidade grande dispersou. A enxada esquecida e tida como desvalor pela gente da cidade, usada pela patroa para desqualificar e desprezar Albertina quando era sua empregada doméstica, enxotando-a e mandando-a de volta para a enxada como a única coisa que lhe resta, é em verdade o seu tesouro, o início de uma reviravolta que lhe permitirá o resgate de sua dignidade, de sua própria vida, de seus valores de raiz, da reabilitação do seu viver e da criação de seus filhos. O conselho dado com desprezo repercute, paradoxalmente, como despertar na memória para o seu real valor, indicação para o caminho da vitória e da felicidade. O livro pode ser lido numa chave alegórica que confere uma dimensão mais ampla espacial e temporalmente: o ser homem e seu habitat, o planeta. O valor de plantar e de colher. O plantio do bem e a colheita do bem. A realidade feliz do campo em contraponto à infelicidade e à ilusão da cidade.

A narrativa tem sabor de caso contado e prima pelo domínio da língua portuguesa em uma construção de frases lapidadas em escrita limpa e sem deslizes. Os diálogos são registrados em variante linguística da fala do povo, contribuição inestimável para o levantamento dos falares regionais nas pesquisas acadêmicas. A ingenuidade do enredo que lembra narrativa de aventura, na qual tudo e todos estão a colaborar com o herói para que ele vença as adversidades, resgata o sabor de contar estórias, e até de causo de onça, sendo a protagonista a grande heroína que ganha fama de matadora das pintadas. Como Robson Crusoé, ela transforma tudo e do nada constrói um ambiente de fartura e de sobrevivência contra as intempéries. Tira leite de planta, mel dos favos, frutos das árvores, tece objetos com palhas e, paradoxalmente, inicia um acúmulo de capital, o que lhe permitirá ser proprietária de uma terra e uma fazenda. Os princípios que regem Albertina não são, todavia, corrompidos pela ambição malsã. O desejo que a move em direção à retomada do que foi dos seus, a casa abandonada e em ruínas, na qual viveu sua infância, é um desejo de reconstrução e, simbolicamente, de resgate de antigos valores: um teto seu, um exemplo de lide com a terra e com a fartura que a vida simples do campo pode proporcionar.

Por tratar-se de uma narrativa mimética, há uma confiança na linguagem, não havendo conflito ético-estético do narrador com relação ao ato de narrar. Conta-se uma estória, bem estruturada, amarrando-se todas as questões, e dando resolução a todos os problemas. O texto subterrâneo diz de uma ideologia que acredita na força do povo, que, com sua sabedoria, pode eliminar a pobreza,voltando para o campo e não se evadindo para a cidade. Ao mesmo tempo, de modo sutil, critica os grandes proprietários com imensidão de terras improdutivas e que poderiam servir a muitas outras Albertinas.

A figura da mulher, mãe solteira, é emblema da mãe terra de onde tudo provém se bem lavrada, que está a serviço dos filhos que nela habitam. Haja oportunidade e o homem encontra ali o que comer, vestir, agasalhar, e a arte mais propícia, o artesanato, que se contrapõe como valor ao vaso chinês quebrado (episódio na casa citadina da patroa), adquirido por grande quantia em terras estranhas e sem valor real, sem a beleza e o prazer de ter sido feito pelas próprias mãos. Quebrar o vaso chinês — uma mercadoria que circula no mercado capitalista e sendo supervalorizada,provoca a expulsão de Albertina do emprego — corresponde simbolicamente a romper com os falsos valores. Contrapõe-se ao artesanato valioso produzido pela filha de Albertina, Rosália, com ciência do povo, transmitida pela mãe com o valor afetivo do artefato, da cultura popular. Nasce uma artista em Rosália e nasce a ideia do valor individual do trabalho e do trabalhador que não é apenas uma engrenagem em uma máquina de produção alheia. As mãos destacam-se como um símbolo maior do poder do homem: de produzir, de fazer arte. Há um tom bíblico como lição de vida: aprender a fazer e não apenas receber. Ecoa ainda a bíblia no tema da volta do filho pródigo e do perdão e acolhimento das filhas que se perderam. Todos que foram envolvidos na perdição da cidade.

A riqueza de informações do romance proporciona ao leitor um conhecimento do local, da zona rural, do interior da Bahia. Há um inventário de valores históricos, geográficos, hábitos, linguajar — a cultura local.

A oposição entre a cidade e o campo é radical, representando o mal e o bem, a perdição e a salvação,o que equivale ao mal da civilização como esquecimento do potencial humano, do fazer,e a memória e transmissão do saber pela cultura artesanal. Há um belo trecho do capítulo 38,no qual Albertina explica aos filhos a permanência das onças, apesar de ela mesma já ter eliminado algumas, e como as outras onças conheciam o caminho que deviam trilhar. Corresponde a uma lição do narrador sedentário, descrito por Walter Benjamin, o camponês que permanece na terra e transmite aos mais novos a sabedoria adquirida e passada de geração a geração. O narrador afirma: “Albertina sabia de tudo” e lhe dá a palavra para que ela profeticamente ensine:

— Meu filho, desde quando o mundo nasceu, no perdido tempo das era, os parente das onça tinha a sua rota. Sempre pelo mermo lugá, pegano caititu, veado, tatu, o que achava. U’a ensinava a outa por onde devia andá. As pequeninha acompanhava as mãe, aprendeno, logo deixava o ninho. Cumo tô fazeno com ocês. E passava sempre pela merma tria, de serra a serra. Pelos tabuleiro sem fim desse mundão de meu Deus. Já viajava de zoio fechado. Conhecia tudo. Morria u’a de veia, nascia outas, rendendo; tornava a morrê e tocava a vida. Nada atrapaiava pelos camim, quando era só mato e bicho. Antes de se pensá em gente morano por aqui.
— A senhora é desse tempo, mãe?
— Minino, nem meus pai, nem meu avô, nem o tetra viu o começo desses tempo.


Albertina como dona de seu próprio destino é situada representativamente em uma zona entre gente e animal, guardando deste a força do instinto e do sexo e a liberdade de ação. Como ser humano íntegro, é dona de uma ética espontânea e grandiosa que afirma a força do seu caráter, caráter de uma heroína romanesca. Há um círculo de solidariedade entre ela e os animais: ela amamenta a cabra para que esta sobreviva, e a cachorra, Cholinha, amamenta seus filhos e também a cabra. Todos vivem em uma horizontalidade que os irmaniza: todos são criações de Deus.

Albertina é leitora do mundo: decifra os sinais. Ela é analfabeta, mas é professora que dá lições sobre como fazer, tem um saber ancestral que transfere para seus filhos, homens e mulheres. Ser mítico que encarna o saber do homem e da mulher: sabe usar os instrumentos de trabalho, usa o facão no roçado melhor que qualquer homem; mata onça, não tem medo, desbrava, transforma, constrói. Como mulher, ensina a tecer, fazer roupa, e ainda sabe curtir couro, aproveitar a carne do gado morto por envenenamento, caçar pássaro, tirar leite do vegetal, pegar mel nos favos etc.

As cenas descritas ou narradas por Euclides Neto permanecem vivas na imaginação do leitor. Ao valorizar a narrativa com o sabor de contar estórias edificantes, seu romance insere-se na contramão dos romances da contemporaneidade que valorizam mais a escrita como auto reflexão e abandonam o foco do enredo e a crença no narrar. A enxada convoca alegoricamente os leitores e os escritores para resgatarem as sementes da narrativa e, como Albertina, semeá-las.

ilustração: Adrianne Gallinari
Antonia Torreão Herrera
Antonia Torreão Herrera: Doutora em Teoria da literatura e Literatura Comparada pela USP. Proponente e coordenadora da área de Escrita Creiativa no BI de Artes e de Humanidades do IHAC-UFBA, Projeto de pesquisa: O escritor e seus múltiplos.